quinta-feira, 22 de janeiro de 2015




Carregando a pronúncia do erre: no “atrrraso” e na “virrrilha”.
Um das verdades lembradas por uma amiga nossa é o ditado: “Gosto não se discute”. Ela tem absoluta razão. O que seria do verde, se todos, indistintamente, só gostassem do vermelho? Cada um tem suas próprias predileções. Uma das minhas preferências sempre foi a de ouvir, pacientemente e com alegria, os causos contados por meus pais, meus tios e meu sogro. Observava o prazer e o encanto que eles tinham em narrar suas histórias, algumas delas já repetidas, mas que lhes renovavam a mesma satisfação.

Se ontem os escutava, hoje sou eu que me empolgo em contar não só os fatos acontecidos comigo, mas também os que me foram narrados por meus saudosos parentes. E, muitas vezes, ouço a advertência de que estou sendo repetitivo. Mas... Fazer o quê?  Se isto me renova a satisfação...

Devo esclarecer, entretanto, que não sou um nostálgico, as lembranças que aqui apresento não estão associadas a um desejo sentimental de regresso. A palavra nostalgia vem do grego e tem o sentido de reencontro com a dor e o sofrimento, muito parecido com o termo melancolia, que significa morbidez, tristeza e depressão. Não é esse o meu caso. Meu sentimento é de aproveitar as boas coisas dos dias atuais e, na sobra de tempo, lembrar com alegria os velhos tempos e as pessoas que amávamos, “matando” a saudade.

Depois dessa reflexão de matuto simão-diense, vamos às lembranças que nos interessam.

Durante algum tempo, eu e meu sogro (Seu Antônio de Silva) nos reuníamos na casa de tio Paulo e com ele passávamos horas relembrando fatos ocorridos em Simão Dias.

Em uma dessas conversas, falávamos sobre as feiras aos sábados, na Avenida Cel. Loyola de minha cidade natal. Lembrei-lhes de personagens que se fixaram em minha mente de garoto (e até hoje permanecem): ferreiros, engraxates, comerciantes de feijão, de farinha, de amorosa, de bois de barro e, entre eles, um senhor que vendia requeijão na porta do velho mercado.


Pelo sotaque, caprichando na pronúncia dos erres, esse senhor, vendedor de requeijão, parecia ser estrangeiro. Minha memória o reteve como um homem forte, sempre de paletó e chapéu, que conversava alto e quando evidenciava os erres mostrava os dentes amarelos. Todas suas frases eram concluídas com o um: ô rrraio! Filho do rrraio! De tanto falar assim, o produto de seu comércio passou a ser conhecido como o requeijão do filho do RRRAIO.


Tio Paulo contando a história
 penosa da senhora dos ERRES.
Assim que relembrei este fato, tio Paulo se lembrou de uma senhora que também pronunciava com intensidade os erres. Então, com seu jeito inigualável de contar “histórias penosas”, ele passou a narrar os causos que tentarei repassar pra vocês.

Dizia meu alegre tio que nos anos quarenta/cinquenta morava em Simão Dias uma senhora engraçada que não tinha medo ou vergonha de se expressar. Ela sabia, como o velho do requeijão, dar uma entonação especial na pronúncia dos erres. Era do tipo que não tinha papas na língua. Quando tinha que dizer, dizia mesmo.

Quando ela se casou, sua idade já passava dos trinta anos, era uma fogosa balzaquiana. Seu noivo também era um coroa. Formavam um par expandindo idade.  No dia das núpcias, com sua franqueza, ela dizia ao noivo, sem reservas e para que todos a ouvissem, que aquela noite seria a grande oportunidade para os dois recuperarem o tempo perdido. Então ela repetia alegremente, em alto e bom som, carregando os erres:

 - Hoje vamos tirar o ATRRRAASO.

No dia seguinte à lua-de-mel, espargindo alegria, ela vangloriava-se, afirmando que a alcova tinha sido pequena para o movimento de amor e prazer e, sem cerimônia, repetia:

 - Ontem, a noite foi uma criança. Recuperamos todo o ATRRRAASO!
...

Meu tio contava a história e, ao final, ria muito, partilhando conosco sua alegria franca e contagiante. Ríamos da história, de seus gestos e também do seu riso. E ele não se fazia de rogado e nos contava outra “penosa” melhor.
Dizia ele que presenciou outro fato com aquela engraçada balzaquiana.

Em uma tardinha, quando garis varriam a rua em frente a sua casa, a senhora dos erres aproximou-se de uma delas para perguntar qualquer coisa. De repente – quando a suada varredora levantou o braço para mostrar algo ao longe, expondo a sovaqueira – a irreverente senhora afastou-se e, com as mãos tapando o nariz, exclamou sem medir o tom, caprichando nos erres:
- ARRRRE! Que catinga! Se as axilas estão assim, imaginem as VIRRRIILHAS!


Aracaju, 22/01/2015
Beto Déda