Carregando a pronúncia do erre: no “atrrraso” e na “virrrilha”.
Um das verdades
lembradas por uma amiga nossa é o ditado: “Gosto
não se discute”. Ela tem absoluta razão. O que seria do verde, se todos,
indistintamente, só gostassem do vermelho? Cada um tem suas próprias predileções.
Uma das minhas preferências sempre foi a de ouvir, pacientemente e com alegria,
os causos contados por meus pais, meus tios e meu sogro. Observava o prazer e o
encanto que eles tinham em narrar suas histórias, algumas delas já repetidas,
mas que lhes renovavam a mesma satisfação.
Se ontem os
escutava, hoje sou eu que me empolgo em contar não só os fatos acontecidos
comigo, mas também os que me foram narrados por meus saudosos parentes. E,
muitas vezes, ouço a advertência de que estou sendo repetitivo. Mas... Fazer o
quê? Se isto me renova a satisfação...
Devo esclarecer,
entretanto, que não sou um nostálgico, as lembranças que aqui apresento não
estão associadas a um desejo sentimental de regresso. A palavra nostalgia vem
do grego e tem o sentido de reencontro com a dor e o sofrimento, muito parecido
com o termo melancolia, que significa morbidez, tristeza e depressão. Não é
esse o meu caso. Meu sentimento é de aproveitar as boas coisas dos dias atuais e,
na sobra de tempo, lembrar com alegria os velhos tempos e as pessoas que
amávamos, “matando” a saudade.
Depois dessa
reflexão de matuto simão-diense, vamos às lembranças que nos interessam.
Durante algum
tempo, eu e meu sogro (Seu Antônio de Silva) nos reuníamos na casa de tio Paulo
e com ele passávamos horas relembrando fatos ocorridos em Simão Dias.
Em uma dessas
conversas, falávamos sobre as feiras aos sábados, na Avenida Cel. Loyola de
minha cidade natal. Lembrei-lhes de personagens que se fixaram em minha mente
de garoto (e até hoje permanecem): ferreiros, engraxates, comerciantes de
feijão, de farinha, de amorosa, de bois de barro e, entre eles, um senhor que
vendia requeijão na porta do velho mercado.
Pelo sotaque, caprichando
na pronúncia dos erres, esse senhor,
vendedor de requeijão, parecia ser estrangeiro. Minha memória o reteve como um
homem forte, sempre de paletó e chapéu, que conversava alto e quando
evidenciava os erres mostrava os
dentes amarelos. Todas suas frases eram concluídas com o um: ô rrraio! Filho do rrraio! De tanto
falar assim, o produto de seu comércio passou a ser conhecido como o requeijão do filho do RRRAIO.
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Tio Paulo contando a história penosa da senhora dos ERRES. |
Assim que relembrei
este fato, tio Paulo se lembrou de uma senhora que também pronunciava com
intensidade os erres. Então, com seu
jeito inigualável de contar “histórias penosas”, ele passou a narrar os causos
que tentarei repassar pra vocês.
Dizia meu alegre
tio que nos anos quarenta/cinquenta morava em Simão Dias uma senhora engraçada
que não tinha medo ou vergonha de se expressar. Ela sabia, como o velho do
requeijão, dar uma entonação especial na pronúncia dos erres. Era do tipo que não tinha papas na língua. Quando tinha que
dizer, dizia mesmo.
Quando ela se
casou, sua idade já passava dos trinta anos, era uma fogosa balzaquiana. Seu
noivo também era um coroa. Formavam um par expandindo idade. No dia das núpcias, com sua franqueza, ela dizia
ao noivo, sem reservas e para que todos a ouvissem, que aquela noite seria a
grande oportunidade para os dois recuperarem o tempo perdido. Então ela repetia
alegremente, em alto e bom som, carregando os erres:
- Hoje vamos
tirar o ATRRRAASO.
No dia seguinte
à lua-de-mel, espargindo alegria, ela vangloriava-se, afirmando que a alcova tinha
sido pequena para o movimento de amor e prazer e, sem cerimônia, repetia:
- Ontem, a
noite foi uma criança. Recuperamos todo o ATRRRAASO!
...
Meu tio contava
a história e, ao final, ria muito, partilhando conosco sua alegria franca e
contagiante. Ríamos da história, de seus
gestos e também do seu riso. E ele não se fazia de rogado e nos contava outra
“penosa” melhor.
Dizia ele que
presenciou outro fato com aquela engraçada balzaquiana.
Em uma tardinha,
quando garis varriam a rua em frente a sua casa, a senhora dos erres aproximou-se de uma delas para perguntar
qualquer coisa. De repente – quando a suada varredora levantou o braço para
mostrar algo ao longe, expondo a sovaqueira – a irreverente senhora afastou-se
e, com as mãos tapando o nariz, exclamou sem medir o tom, caprichando nos erres:
- ARRRRE! Que catinga! Se as axilas estão assim,
imaginem as VIRRRIILHAS!
Aracaju, 22/01/2015
Beto Déda