Uma aventura no Povoado Ilhota
Naquela época, D. Zefinha
era professora de uma escola rural no povoado Ilhota, no município de Simão
Dias. Certo dia, ela e tia Nice preparavam-se para ida àquele povoado, onde iriam
arrumar o prédio onde funcionava a escola. Eu e meu primo Wellington (dois anos
mais velho que eu) estávamos brincando por ali e presenciamos as conversas
sobre os preparativos para o passeio. Percebendo nosso interesse, elas
prometeram que nos levariam. O certo é que conversaram com mamãe e tia Vina e,
no dia seguinte, fomos ao passeio.
Na Ilhota, o fato
marcante foi a admiração que tivemos ao ver uma jumenta e seu filhote pastando
ao lado do prédio escolar. O jeguinho era uma beleza de deixar qualquer garoto
admirado, enquanto a mãe-jumenta mancava e tinha uma bicheira na coxa esquerda,
defeitos que nos causavam dó, mas que acreditávamos passíveis de recuperação. Compartilhando
de minha curiosidade, Wellington não se conteve e foi indagar quem era o dono daqueles
animais. D. Zefinha disse que não tinham dono, apareceram ali na escola há
algum tempo e, sorrindo, fez uma oferta sem maiores pretensões: - “Se vocês quiserem, o filhote é de Beto, que
é o mais novo, e a jega é sua, porque você é mais velho”. Lembro-me que pulamos de alegria. Não
sabíamos, nem tampouco D. Zefinha, que aquela oferta em tom de brincadeira traria
resultados surpreendentes e doloridos para nossas mãos.
Voltamos para cidade no
início da tarde daquele mesmo dia. À noite fui à casa de vovó Olívia, na Rua
dos Ribeiros, e lá estavam meu irmão Carlos e os primos Alfeu e Wellington. Assim
que fui me aproximando, Alfeu, o mais velho da turma, foi dizendo: - “É verdade o que Wellington tá dizendo?
Vocês ganharam uma jumenta e o filhote?”. Confirmada a indagação, Alfeu
tratou do plano de ir buscar os animais. Planejamos tudo. Fomos todos à casa de
Gervásio, o aguadeiro, irmão de Arlinda, e alugamos um jegue, para servir de
montaria e facilitar a vinda dos outros, afirmava Alfeu.
No sábado cedinho, sem
avisar a ninguém, partimos para Ilhota. Alfeu, no comando, Carlos com
subcomandante, Wellington e eu como comandados. E rumamos à aventura. Como era
o mais novo tinha direito a ir sempre montado na garupa do jegue alugado, com
os demais sempre se reversando na frente. O Alfeu, mais sabido, passava mais
tempo montado e só descia quando as reclamações dos companheiros tomavam ares
de motim.
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Os aventureiros: Carlos, Alfeu, Beto e Wellington |
Chegamos à Ilhota e
ficamos em frente à escola rural, cuidando dos animais. Poucas lembranças
restam do tempo que passamos no povoado. Recordo-me apenas de uma cena:
estávamos sentados no alpendre da escola, todos tentando reavivar um passarinho
sofrê, que fora vítima do badogue de
um dos aventureiros. Não deu certa a tentativa e foi uma frustração para todos.
Enquanto isso, em nossas
casas, os familiares estavam em agonia, sem saber onde andávamos. Não
aparecemos para o almoço e somente à tardinha é que tiveram notícia. O Gervásio
apareceu por lá em busca do seu jegue e informara a tia Esterzinha o nosso
plano de ir à Ilhota. Mandaram pessoas
nos encontrar, mas foi providência em vão...
A volta para casa foi cansativa, o enfado do
dia era visível no rosto de cada um. Mas voltamos trazendo a jumenta, o filhote
e o jegue de Gervásio. Mal sabíamos o
que nos esperavam...
Chegamos ao anoitecer,
exaustos. Alfeu e Wellington cuidaram de guardar os animais. Eu e Carlos fomos
para casa. Em frente ao bangalô de Seu Pierre, encontramos Haroldo e Artur que,
entre sorrisos e mangação, avisavam que papai nos aguardava e a palmatória já
estava preparada (na verdade era um tamanco). Foi o sinal para eu começar a
chorar.
Fomos pela Praça de São
João, entramos em casa pelo portão dos fundos. Sorrateiramente nos escondemos
embaixo da grande mesa de jantar. Papai logo chegou e aí eu já desaguava em
choro. Fui o primeiro e ser chamado, indagado, advertido pela aflição causada à
família e, por fim, surrado com meia dúzia de bolos dados com a parte lisa do
tamanco. Depois foi a vez de Carlos. Papai o mandou abrir a mão. Ele não abriu.
Diante da ameaça de receber os bolos por cima dos dedos, cedeu. Mas não chorou,
embora eu, embaixo da mesa, gritasse insistentemente, entre soluços: - “Chora
Carlos, chora!” Por ser mais velho recebeu uma dúzia de bolos, mas não chorou.
Com a décima segunda pancada, duas longas lágrimas desceram pelos olhos. Depois
do acontecido, esse feito foi contado com sucesso na reunião da turma. E
Carlos, satisfeito, empinava o nariz...
Tio João Déda cuidou de
disciplinar Alfeu e Wellington. Parece que também receberam uns cocorotes.
Alfeu, por ser o mais velho e o comandante da turma, foi obrigado a levar os
animais de volta. No dia seguinte, quando nos reunimos na casa de vovó, disse ele
que não foi até a Ilhota. Deixou os jegues no tanque da missão, na saída da
cidade. E dava uma gostosa risada, balançando a cabeça para tirar os cabelos
louros dos olhos...
Pouco depois, soubemos
que os animais foram apreendidos pela Prefeitura e, parece-me, levados a
leilão.
E assim aconteceu nossa
aventura na Ilhota e a inesquecível surra
de tamanco liso...
Aracaju, 06/10/2012
Beto Déda