RECORDAÇÕES DE MEU SAUDOSO PAI.
Nas primeiras
horas da madrugada desta quarta-feira, dia 02 de setembro, surgiram lembranças
de um dia inesquecível em minha vida. Não gosto de lembranças tristes, mas não
posso esquecer os últimos dias de vida do meu saudoso pai, José de Carvalho
Déda. Foi justamente há 52 anos, no alvorecer do dia 02 de setembro de 1968,
que ele foi vítima de um enfarte fulminante e passou desta para outras
paragens.
Lembro-me a
amargura que me causou aquele desenlace. Eu tinha um convívio muito apegado ao
meu pai. Desde garoto, com 12 anos de idade, com ele trabalhei no jornal “A
Semana”. Ele foi meu grande mestre e herói, orientando-me com
exemplos formidáveis de sua vida de lutas.
Naquela triste
semana, com o coração em prantos, cuidei da edição do jornal, com ampla
reportagem sobre seu súbito falecimento. Não esqueço que, ao entrar na sala de
redação, lá encontrei sobre sua mesa de trabalho o editorial e a xilogravura
que ele preparara no domingo pela manhã, e que publiquei na edição que
noticiou sua inesperada morte.
Passados tantos anos daqueles
momentos tristes, continuo a lembrar e sonhar sempre com
ele, que continua vivo em minhas lembranças. É o meu herói imortal.
Recentemente, no final do mês de agosto, lembrei-me dele ao assistir na Televisão uma reportagem sobre
Hiroshima, cidade japonesa que foi arrasada em 1945 por uma bomba atômica lançada pelos
Estados Unidos.
A lembrança me
ocorreu porque meu pai escreveu, em 1956, um artigo sobre aquele impiedoso
bombardeio, com o título “Promessa de Caboclo”, publicado no jornal “Correio de Aracaju”,
em 30/05/1956.
Para os que gostam de uma boa
leitura, reproduzo abaixo aquele artigo, no qual meu pai descreve o problema da bomba
atômica, comenta, com ironia, a artimanha dos americanos ao se aproveitarem do
minério brasileiro e, a propósito, narra de modo chistoso uma historieta de
nosso folclore. Vale a pena ler:
“A PROMESSA DO CABOCLO
Escrito por CARVALHO DÉDA, em 30/05/1956
Há cerca de onze
anos, numa manhã formosa de céu límpido, três aviões americanos sobrevoavam à
grande altura, a cidade japonesa de Hiroshima.
Coisa trivial
naqueles tempos de guerra. Aos olhos dos habitantes da cidade sobrevoada,
parecia que aquela pequena esquadrilha realizava apenas um voo de
reconhecimento. Mas não foi assim. Em dado momento, um estrondo infernal abalou
toda a região, e um clarão intenso, ofuscante, trágico e diabólico iluminou a
cidade de ponta a ponta. E num abrir e fechar de olhos Hiroshima ficou reduzida
a uma cidade arrasada em cujo solo 250 mil corpos humanos jaziam completamente
carbonizados.
O mundo tremeu
apavorado. Naquela hora tremenda a era atômica atingia sua plenitude.
Não havia ainda se
sumido o último eco da terrível explosão e as cúpulas das nações já se
empenhavam no descobrimento do segredo atômico. Souberam que a
"peste" era fabricada com monazita e sais de tório. Quem possuía um
pouquinho daqueles fabulosos metais atômicos, tomava suas imediatas cautelas,
guardando-as à sete chaves. Somente o Brasil, displicente, ingênuo e folgazão,
continuava dormindo a sono solto e de pés espalhados nas coloridas praias de
Guarapari, em cima das imensas reservas de matéria atômica!
Aquelas areias
coloridas serviam para enfeitar as nossas praias e, quando muito para a
fabricação dos incandescentes véus das petromax e para fazer pedras de
isqueiro. Os americanos quiseram comprar nossas areias. Matutamos: — Pra
quê?!... E chegamos a uma conclusão ingênua: — Bons sujeitos, estes americanos!
Não tendo mais que fazer com tanto dinheiro, querem nos proteger comprando
simples areias! Pois, areia neles!...
Sucede que os bons
sujeitos quiseram negócio seguro, e exigiram o preto no branco. — Seguro morreu
de velho.
Firmou-se o acordo e
o Brasil passou a vender suas reservas de monazita a preço de dez reis de mel
coado. Mas eram favas contadas e o Brasil continuava sendo o país da fartura...
Tudo corria bem, até
que um dia alguém botou a boca no mundo. Aquele acordo não podia prevalecer por
mais tempo. O cumprimento da promessa de venda importava na saída, para começo
de conversa, de 24 toneladas de monazita, quase de mão beijada! Matéria prima
para a fabricação de bombas atômicas. 24 mil toneladas! E a bomba de Hiroshima
pesava apenas 230 gramas!
E foi um bê-rê-rê dos
diabos. Porcos na roça do Governo. Abriram-se os debates no Congresso e na
imprensa. De um lado os que não se conformavam com o cumprimento da promessa.
Ora bolas! Promessa só de Cristo!...
De outro lado os que
se batem pelo cumprimento da palavra empenhada. — O boi pela ponta e o homem
pela palavra... Promessa é dívida!...
E chegamos diante de
um dilema: não pagar a promessa e fazer a palavra do Brasil desacreditada como
palavra do cigano, ou mantê-la a todo custo, doa a quem doer.
xxx
Aí estão duas
histórias. A triste, da Hiroshima arrasada com 250 gramas de droga, e
a velha história do brasileiro que só fecha a porta depois de roubado. Mas,
como história puxa história e conversa puxa conversa, vou contar uma historieta
do nosso folclore:
Conta-se que um
caboclo, precisando de chuva para o seu roçado, fez uma promessa ao santo da
sua devoção. Daria ao santo o preço da venda da sua vaca de leite, se chovesse
no seu roçado. Feita a promessa com todos os efes e erres da fé nordestina, a
chuva caiu mesmo no roçado.
Agora, o que
preocupava o caboclo era o pagamento da pesada promessa. Fora realmente
insensato, prometendo tanto. Sua vaca, vendida pelo barato da época, valia 500
mil reis! Mas, promessa é dívida...
O caboclo matutou,
coçou a barbicha, cuspia entre os dentes, pigarreou e resolveu pagar a
promessa. Anunciou a venda da vaca. Espalhou aos quatro ventos que venderia a
vaca pelo preço irrisório de 2 mil reis. Mas havia uma condição: quem comprasse
a vaca era obrigado a comprar também um galo velho. Vaca e galo. E tabelou os
preços: vaca, 2 mil réis, o galo 500 mil réis...
Como o exagerado
preço do galo ficou equilibrado pelo baixo preço da vaca, a venda se realizou
sem dificuldades, em conjunto, vaca e galo ao mesmo comprador.
Embolsado do preço da
venda em conjunto, o caboclo correu aos pés do santo e depositou os 2 mil réis
da vaca no mealheiro sagrado. Estava paga a promessa sem maiores sacrifícios
para o caboclo. O santo resignou-se, por isso que, segundo a tradição popular,
continuou chovendo na roça do esperto caboclo.
Não vai nesta
historieta nenhuma insinuação velhaca ou capciosa, mas entendo que, se
entregassem o rumoroso caso da dívida a um caboclo do sertão sergipano, ele
resolveria a questão, condicionando a venda do tório à dos abacaxis que
possuímos. Quem comprasse o nosso tório seria obrigado a comprar os abacaxis;
abacaxis de todo o gênero. O tório ao preço de vaca, mas os abacaxis ao preço
de galo.
Façam isto e deixem o resto por conta
do caboclo.
(Correio de Aracaju – nº 5.049 – 30-05-1956)
Aracaju,
02/09/2020
BETO DÉDA
Fac-símile do artigo no jornal "Correio de Aracaju",de 30.05.1956 :