quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018


UM CANCIONEIRO ARGENTINO EM SIMÃO DIAS.


Nesta semana estiveram me visitando as amigas Amanda e Vanessa que vão fazer o mestrado em história na Universidade Federal de Sergipe. Conversamos sobre diversos temas ligados à história recente de Simão Dias e Paripiranga, onde elas residem.

Folheei minhas coleções de jornais para esclarecer alguns assuntos e deparei-me com fatos que, depois que elas saíram, fizeram-me recordar do final de 1968, quando eu trabalhava   no Banco do Nordeste, em minha terra natal. Naquela época, além de bancário eu era editor e diretor do jornal “A Semana”, fundado pelo meu saudoso pai, José de Carvalho Déda.

Lembro-me, como se fosse hoje,  que em uma tarde do final daquele ano, chegando à redação do jornal, o Luiz Santa Bárbara (que era o chefe das oficinas e repórter esportivo) disse-me que estava ali um artista argentino que queria falar comigo.

Então um senhor idoso apresentou-se como Antônio José, dizendo-se  artista profissional vindo de  Buenos Aires. Era um cancioneiro que pretendia se apresentar ao povo simãodiense em espetáculo a ser realizado no Cine Brasil. Esclareceu-me que seriam apresentadas canções românticas entrelaçadas com o bom humor de seu personagem brincalhão, denominado Chupetinha de Azucar.

Feita a apresentação, indagou-me se seria publicada uma nota sobre seu espetáculo e, para ilustrar o jornal, ofereceu emprestado um clichê com foto de seu show em uma sala do Lions Clube do Brasil. 

Publiquei a notícia do Cancioneiro Argentino, ilustrada com a foto, anunciando a apresentação para o dia 30/12/1968, uma segunda-feira.

Lembro-me que perguntei ao idoso artista por que escolhera segunda-feira, dia 30 de dezembro, para seu show. Ele respondeu que não foi possível outra data, porquanto o proprietário do cinema não abria mão dos dias de sexta-feira, sábado e domingo, porque eram noites sempre  comprometidos com programas lucrativos de exibição de filmes.  Restou-lhe, então, a segunda-feira.  

Sem saber, ou talvez sabendo, o seresteiro menosprezou a tradição de nossa gente, que se resguardava em evitar compromissos para a segunda-feira, ainda mais na antevéspera de ano novo, quando se poupava energias  para a grande festa no largo da rua da feira, virando a noite, em comemoração ao  início de 1969.

No domingo pela manhã, surpreendi o artista pregando pequenos anúncios nas palmeiras imperiais da praça. Usava pregos adquiridos na barraca de Geonides, filho de Anita Pichincha. Os cartazes anunciavam o espetáculo para a segunda-feira. 
  
Naquela época o Banco do Nordeste ficava na Rua do Coité, na esquina com a Rua Dr. Joviniano de Carvalho, em frente ao Bar de Valério, e na esquina ao lado ficava o prédio do Cine Brasil, de propriedade do Seu Antônio Resende.

Na noite daquela segunda-feira, todos os bancários, especialmente os que trabalhavam  no setor de crédito rural, fazíamos serão, para fechar o balanço anual da agência, de modo a remetê-lo para a direção geral do banco, em Fortaleza, no dia 31 de dezembro. 

Naquele tempo não existia computador e o trabalho era manual, com máquinas “facit”, utilizadas para calcular os encargos bancários sobre  os milhares de financiamentos concedidos pela agência.  Todos os benebeanos eram envolvidos nos trabalhos e não se permitia ausências, nem o gozo de férias no mês de dezembro.

Pois bem. Naquela noite, no andar superior do prédio do banco, escutávamos a voz do cancioneiro argentino sem, contudo, avaliarmos sua performance, isto porque não ouvíamos qualquer  manifestação da plateia.

Já tarde da noite, quando deixávamos os trabalhos, soubemos que o show tinha sido um fiásco. Fracasso de público. Apenas meia dúzia de gatos pingados. Com a bilheteria fraca, o resultado não dera para pagar o arrendamento do cinema. Ao perceber o insucesso, o proprietário da casa de espetáculos não vacilou em aplicar o provérbio popular: - Farinha pouca, meu pirão primeiro! E se apropriou da minguada renda.

Soubemos também que o cancioneiro ficara aflito diante da impossibilidade de pagar as despesas com sua estadia no Hotel dos Viajantes.

Saímos do banco e fomos a um bar no Bonfim de Baixo, tomar cerveja e saborear um bom tira-gosto. Lá estávamos: eu, Zé Carlos Déda, Gilberto Duarte, Zé Aloísio, Zé Maria, Heribaldo, Edson Freire, Adelmo Fontes e João de Mané Zabé; este último prestava serviços esparsos aos bancários.

Depois da primeira cerveja aberta, enviamos João de Mané Zabé à procura do cancioneiro para convidá-lo a cantar, tomar uma  cerveja e, ao final, receber da turma uma pequena renda, de modo o cobrir parte da despesa com o hotel.

Pouco depois, o João retornava com a notícia de que  o velho argentino não fora encontrado. E o porteiro do hotel informara que o artista, disfarçado em Chupetinha de Azucar,  escafedera, sem deixar vestígios de seu destino.

O portenho  pendurou no prego a conta das despesas de quatro dias,  registradas em notas que passaram a figurar entre os alfarrábios de despesas não pagas ao hotel. 

No outro dia, o insucesso do cancioneiro e seu desaparecimento foram assuntos em primeira pauta da cidade.

Surgiram, então, várias versões sobre o acontecido. Nenhuma confirmada.

 Diziam os fofoqueiros  que, na hora do frigir dos ovos,  o hotel  procurou se defender e o violão do cancioneiro ficou empenhado, garantindo o futuro resgate do débito...

Alguns informavam que o cancioneiro fora visto lá pelas bandas de Monte Santo, na Bahia, cantando músicas sacras em espanhol. Outros afirmavam que ele, incorporando o personagem Chupetinha de Azucar, se apresentava aos viajantes no navio Tupã no trajeto Propriá-Penedo, pelo Rio São Francisco.

E à noite, na praça da matriz, nos diários encontros em frente à Igreja Matriz, um trio de amigos inseparáveis (Fila, Dedé e Chico Bina) discutira por vários reuniões o destino do cancioneiro. Chegaram a duvidosa conclusão da possibilidade do portenho ter largado o personagem hilário de  Azucar e que estaria se apresentando  com outro nome no eixo  Recife/Fortaleza. Especulação sem fundamento, rechaçada por  pessoas de franco conhecimento.

Mas a verdade é que até hoje não foi sabido o destino do cancioneiro e o do seu violão.  Mesmo consultando conterrâneos que viveram aqueles dias, constatei que ainda não foi desfeita a controvérsia sobre o que realmente aconteceu.

 O que ficou patente, em minha terra, é que a segunda-feira não é um dia propício para show. Especialmente se for na antevéspera do Ano Novo.

Certamente o Chupetinha de Azucar nunca esqueceu essa assertiva. 



ARACAJU, 28/02/2018
BETO DÉDA