sábado, 20 de junho de 2015


A Silabada e o apelo da colocação pronominal
 
Fui aluno de excelentes professoras no curso primário, no Grupo Escolar Fausto Cardoso, em Simão Dias. Foi lá que aprendi os primeiros ensinamentos escolares das inesquecíveis professoras: Olda do Prado Dantas, Iolanda Montalvão, Rita Guimarães e Mileta Oliveira.
 
Em 1957, realizei meu exame de admissão ao Ginásio Jackson de Figueiredo. Ao final de uma das provas orais, tive a alegria de ouvir da examinadora, Professora Zamor de Melo, um elogio merecido às minhas professoras do Grupo Fausto Cardoso.
Já estudando no Jackson, também tive a honra de ser aluno da Professora Zamor, que ensinava Português, e de sua irmã, Profª. Normélia Melo, que lecionava Matemática
.
Embora me dedicasse a acompanhar as lições de minhas mestras, a verdade é que, fora dos muros escolares, nunca tive tesão em me dedicar ao estudo cuidadoso de nossa gramática.
 
Nos primeiros dias no ginásio, em uma aula de Matemática, a Prof. Normélia determinou que eu lesse uma das questões para solução em sala de aula. Meio acanhado, levantei-me e comecei a ler:
- Determinar a medida do “IN...VO...LU...CRO”...
 
Fui imediatamente interrompido pela Professora, pedindo que pronunciasse cuidadosamente a última palavra.
 
Olhei para o livro e indaguei aos meus botões: - Que diabo de palavra é essa?
 
Vacilei um pouco e repeti: IN-VO-LUU-CRO, dando maior ênfase à sílaba “LU”, acreditando se tratar de uma palavra paroxítona.
 
Ouvi o zumbido do “UHHH” e as risadinhas da turma. Fiquei pálido. Amarelei. Com a cabeça baixa, a boca amarga, eu olhei para a professora que veio em meu socorro.
 
A Professora Normélia explicou-me, então, que aquela palavra era proparoxítona, ou seja, sua sílaba mais forte (sílaba tônica) é a terceira da direita para a esquerda, ensinando-me a pronúncia correta, que eu repeti para a turma: IN-VÓ-LU-CRO. Acrescentou ainda que o acento agudo na sílaba “”, antepenúltima sílaba, era um indicativo das palavras proparoxítonas.
 
Ciente da silabada cometida, a explicação da mestra foi o gancho para minha justificativa. Reanimei-me e esclareci que, infelizmente, a página do meu livro estava borrada e não aparecia o acento agudo, identificador das palavras proparoxítonas. Mostrei o livro à professora e fui redimido.
O certo é que em minha memória ficou gravado o vexame sofrido e nunca esqueci a pronúncia e o significado da tal palavra.
 
Ao me lembrar do tempo do Ginásio Jackson de Figueiredo e de regras de nossa gramática, recordo-me também de um fato pitoresco vivido pelo conterrâneo Jorge Almeida. Ele e muitos outros simãodienses foram meus colegas no internato daquele colégio.
 
Certa noite, depois de ser determinada a hora de silêncio, o Jorge continuou conversando e fazendo barulho no dormitório. O bedel, que cuidava da disciplina naquele local, percebendo que a norma do silencio fora desrespeitada, determinou o castigo: Jorge teria de ficar de pé, em frente à porta de entrada do dormitório.
 
O garoto se fez de rogado e não atendeu.
 
Então o encarregado falou grosso: - Vai atender ou não?
 
E a resposta do Jorge veio na forma da lição sobre colocação pronominal, aprendida na aula de Português daquele dia:
- Meu amigo, eu só vou porque PRÓCLISE pediu, MESÓCLISE implorou e ÊNCLISE determinou...
 
E o riso dominou a moçada do dormitório naquela noite, inclusive o bedel...
 
Aracaju, 18/06/2015
Beto Déda
 


terça-feira, 16 de junho de 2015


O fanho e a soda

Nos velhos tempos, quando tio Paulo tinha a fábrica de calçados SIDON, em Simão Dias, ele construiu sete casas para os operários, em área vizinha à loja da fábrica. A rua passou a ser conhecida como Rua das Sete Casas. Quando ele veio para Aracaju, transferiu a fábrica para um prédio que construiu na Rua Basílio Rocha, no Bairro Siqueira Campos, conhecido como bairro Aribé. Ali ele também ele construiu casinhas e quitinetes, anexos à fábrica, para facilitar a vida dos operários que vinham de Simão Dias.

Recentemente, em conversa com o querido sobrinho Déda, filho do meu cunhado Haroldo, ele lembrava um fato contado por tio Paulo.

Dizia meu tio que em uma das casas da fábrica, aqui em Aracaju, morava um jovem aprendiz de sapateiro que era fanho ou “foên”, como se dizia em Simão Dias. Além de parecer falar pelo nariz, o rapaz era dislálico, ou seja, sofria de um distúrbio da fala, apresentando dificuldade na articulação das palavras. Em sua pronúncia “foên” também trocava as letras, em consequência da dislalia. Dizia que estava aprendendo a fazer  “fapatu”, que gostava de “Tota-Tola” e tinha medo de “fapu”.

Para testar a pronúncia do garoto, tio Paulo provocava:
- Olá, Madeirinha, diga rápido, três vezes seguida, a frase: “Lombo cru”.
 Prestimoso e conhecendo o efeito da pronúncia rápida, o moço não se fazia de rogado, repetia a frase, trocando e omitindo letras, alterando o sentido.

Uma tarde, um colega do fanho pediu que ele fosse comprar um refrigerante SODA em um bar próximo ao prédio da fábrica, em frente à estação ferroviária.
 Com timidez, o garoto chegou ao bar e falou baixinho para a garçonete:
 - “Moça, eu quero uma fo...fo...da”.

Surpresa e duvidando do estranho pedido, a garçonete encarou o pobre mancebo e indagou o que realmente ele tinha pedido.

- Ora - disse ele - pedi a você uma foda, ligeirinho...

Ao ouvir a resposta e sentido que sua suspeita estava confirma, a moça fez um escarcéu danado e não tardou chegar o dono do bar que queria surrar o moço, pensando se tratar de um malandro tarado.

E ele não apanhou porque correu até a fábrica onde foi socorrido pelos colegas, que explicaram ao irritado proprietário do bar o distúrbio da fala do inocente “foên” que, dislálico, trocava a letra “S” por “F”.
 
Aracaju, 28/05/2015.
Beto Déda

 
O guardião fajuto, a memória fotográfica e o assassinato de “João Cândjo”
 
Dizia meu querido e saudoso sobrinho Marcelo Déda que eu era o guardião das lembranças da família. De igual modo, o escritor Odilon Cabral Machado, em uma de suas crônicas publicadas em blog da Infonet, reafirma esse meu o cuidado, comparando-me a “um destes templários cavaleiros medievais, trajando armadura invisível de guardião deste tesouro, conforme eterna promessa de missão, sem a qual, tudo estaria perdido, soterrado pela poeira do tempo, lacunas irrecuperáveis de voracidade da traça, tudo que é possível quando é permissiva a irresponsabilidade do homem”.
 
Fico honrado em divulgar o pensamento do sobrinho e do amigo escritor, porém tenho uma confidência a fazer: não fui um bom guardião. Perdi duas importantes fitas cassetes, com gravações de discursos de meu sobrinho Marcelo e com histórias hilariantes contadas por tio Paulo e por meu sogro Antônio de Silva.
 
Na década de 80, através do meu primo Zé Carvalho, que sempre viajava à Zona Franca de Manaus, eu adquiri um vídeo cassete JVC, que usava para assistir aos filmes do Vídeo Clube de Aracaju e gravar programas da TV local. Foi neste gravador de vídeo que gravei, da TV, a maioria dos programas políticos do saudoso sobrinho, desde quando ele foi candidato a prefeito de Aracaju. Lamentavelmente, por uma falha involuntária e até hoje amargurada, perdi a fita que continha importantes programas do querido Marcelo. E mais ainda, também perdi uma fita de áudio, gravada por mim, com antológicos causos contados por meu tio Paulo e meu Sogro, que se reversavam na posse do microfone.
 

Tela do artista Wellington Déda
Com essa confissão, nota-se que não fui nem sou um bom guardião, e de cavaleiro medieval, a que fui comparado pelo bom Odilon Cabral Machado, resta-me, para consolo, a minha semelhança com o personagem da tela “Cavaleiro da Triste Figura”, que embeleza uma das paredes de minha casa e foi pintado pelo parente e artista Wellington Déda. (Quando o quadro chegou em minha casa, perguntei ao neto Miguel: - Quem é esse? Não houve vacilo na resposta: - É o vovô Beto!).
 
Na verdade, para compensar a perdas das fitas, resta-me fustigar a memória e repetir as lembranças para os familiares. O pior, aqui pra nós, é que a repetição começou a encher-o-saco deles. Daí o motivo que passo a contar esses causos aos meus seguidores no facebook.
 
Dizia o saudoso amigo e colega do BNB Mário Jorge, casado com minha sobrinha Selma, que eu tenho uma memória fotográfica. E sacramentava: “Beto, você tem uma memória de Elefante”. Exagero do bondoso Mário Jorge. Apenas gosto de ativar as lembranças para que elas não tenham o mesmo destino das fitas cassete. E fico feliz quando encontro quem aprecie.
 
Agora, por exemplo, lembrei-me de mais um causo, contado por tio Paulo. Dizia ele que tinha um amigo não alfabetizado que costumava empolar as frases, fato que tornava sua conversa muito atrativa pela graça das pronúncias. Passou, então, a narrar dois momentos vividos com o amigo, sem deixar de imitar seus gestos e o modo de falar. Vejamos:
 
Certa vez o amigo chegou de mansinho e começou a dizer que o filho tinha feito uma reforma em sua casa. Com o ar compenetrado, afirmava vaidoso que foi uma obra porreta, realizada sem limitar despesas. 
E narrava os detalhes da reforma, com ligeiras pausas na pronúncia, como se quisesse, no seu estilo, evidenciar sua sabedoria na colocação pronominal: - “REBÔ...CÔLA”, “FÔR...RÔLA”, “PIN...TÔLA”, “ENCE..RÔLA” ... e “APRON...TÔLA”!...
 
Meu tio, então, concluía, afirmando que tinha vontade de dizer ao amigo que, com tantas “rôlas tolas”, o melhor era transformar a casa reformada em uma “gaiola”...

...

Em outra ocasião, esse engraçado senhor apareceu na loja de meu tio com os olhos esbugalhados de emoção. Ao pisar na soleira da porta já foi dizendo:
- Palo, você soube? O rádio anunciou agora mesmo que mataram João Cândjo...
 
Meu tio franziu a testa e indagou: -
Como foi isso? Sempre soube que ele era um homem pacato, de boa paz e que sempre soube cuidar tranquilamente de seus afazeres e comércio. Como aconteceu isso?
- Ora, Palo, dizem que foi questão política. Mandaram bala na cabeça...
 
Tio Paulo olhou para o amigo e disse: 

- Madeirinha, pelo que sei o João Cândido nunca foi político. O seu negócio sempre foi mungunzá e mingau. Você ouviu essa história direito? Mataram o nosso conhecido João Cândido de Simão Dias?
 
- Não, Palo. O fato aconteceu com o tal de João Candjo ou Kendjo, sei lá como se diz... Ele era o presidente dos estranjas americanos e sempre aparecia na televisão...
 
(Foi assim que meu tio tomou conhecimento do assassinato de John Kennedy, Presidente dos Estados Unidos da América, ocorrido em uma sexta-feira, 22 de novembro de 1963).
Aracaju, 14/05/2015
Beto Déda
 
 
A história “penosa” da escova e do AVC
 
 
Dizia meu tio Paulo que nos velhos tempos, em Simão Dias, morava um casal simpático que não economizava palavras ao exaltar a paixão que os dominava. Dir-se-ia, sem exagero, que se completavam. A união era perfeita e as carícias mútuas eram uma constante. Dificilmente afastavam-se por muito tempo.
 
Aconteceu, porém, que determinada semana a mulher teve que viajar até esta Capital para resolver problemas de saúde. O apaixonado marido não pode acompanhá-la, porque estava envolvido em inadiáveis problemas de seu trabalho.
 
Entristecido com a ausência da consorte, o marido revelava ao meu tio o desalento que sofria naquelas noites de solidão. Confidenciou que passara dois dias sem dormir e somente na terceira noite é que conseguiu conciliar o sono. E o fez usando um refrigério meio estranho, mas que surtira um efeito sonífero magistral.
 
Interessado em saber a solução encontrada, meu tio indagou qual foi o tal do “refrigério” encontrado pelo amigo.
 
Então, o apaixonado marido dizia em voz baixa: - Peguei uma escova negra e grande, daquelas que se limpa sapatos, e coloquei na cama ao meu lado.
 
E explicava que ao se deitar, para aliviar a saudade, ele alisava suavemente os pelos da escova, lembrando-se da intimidade da amada...
...
Dizia meu tio que muitos anos depois, a idade não arrefeceu o amor e as carícias mútuas do simpático casal. Os probleminhas – que se tornam grandes entraves entre amantes comuns – não perturbavam o afeto e a ternura que dominava o amor recíproco daquele casal. Viviam bem, se amavam e se completavam.
 
Mas, como nem tudo são flores, uma noite, a sorte não os favoreceu. Depois de trocarem juras de amor, o marido sofreu um preocupante AVC (Acidente Vascular Cerebral). Atordoado com o inesperado ataque, com a boca meio torta, o apaixonado cidadão, olhou tristonho para a amada esposa e com a fala pastosa disse que todo seu lado esquerdo estava ficando dormente e insensível.
 
Diante de tão triste informação, a prestimosa e querida mulher não pensou muito, nem perdeu tempo. Lembrou-se do velho ditado: “Farinha pouca, meu pirão primeiro”.

E, sem perdas de tempo, antecipando-se aos efeitos do acidente vascular que começava a atingir o lado esquerdo do marido, procurou defender o que lhe interessava: meteu a mão na braguilha do enfermo e passou os já amolecidos “documentos” para o lado direito...
 
Aracaju, 06/05/2015.
Beto Déda
 

 

A mão esquerda, o corrimboque e o cafezinho.
Em outros escritos meus, contei que eu sou um admirador incondicional de meus saudosos tios. Encantava-me com suas histórias e ficava feliz ao perceber a paciência que eles tinham em me ouvir e me orientar com exemplos simples e maravilhosos.
Certa vez eu conversava com meu tio Paulo a respeito do hábito de fumar e lembrei-lhe que tio João Déda era o único da família que gostava de cheirar rapé, conhecido como torrado, que era o fumo moído e comercializado por Maria Pixilim, que morava na Rua da Palha, atrás do Açougue, lá em Simão Dias.
Tio João carregava o rapé em um corrimboque, conhecido também como tabaqueiro, feito da extremidade da ponta de boi ou de bode, com tampa de madeira e um laço de couro para facilitar a abertura. Ele tinha todo cuidado com o torrado e não permitia que ninguém o retirasse da caixinha de forma incorreta. Se uma pessoa pedia uma pitada ele oferecia o rapé de modo que o pedinte sempre usasse os dedos da mão esquerda. Se a pessoa insistisse com a direita ele passava o corrimboque para o lado esquerdo, insinuando ao sujeito que a pitada deveria ser retirada com os dedos da mão esquerda.

Perguntei ao tio João a razão daquele cuidado e ele me explicava que os dedos da mão direita traziam impurezas, porque eram usados pelo homem para pegar coisas íntimas ao satisfazer suas necessidades físicas: fazer xixi, por exemplo. Para ele os dedos da mão esquerda tinham menor sujeira.
Cocei a cabeça, pensei um pouco e indaguei:
 - Meu tio... e se o pedinte for canhoto?
- Ora, respondeu ele, os que me pedem a pitada são amigos e conhecidos. Eu sei quem é canhoto e, neste caso, o corrimboque vai para os dedos da mão direita. 
Assim que contei esse fato, o tio Paulo, com seu jeito simpático, disse-me que conhecia esse hábito de tio João e contou-me o causo que repasso pra vocês.




Tio Paulo era o proprietário de casa de calçados “Esquina da Economia”, situada entre as ruas João Pessoa e São Cristóvão.  Sempre que tinha uma folga ele ia até a Padaria Nossa Senhora do Socorro, que ficava próximo, tomar um cafezinho e fumar um cigarro, que sempre ficava preso entre seus lábios. A padaria era movimentadíssima e servia muito café pequeno. Para se resguardar, meu tio sempre pegava a xícara com a mão esquerda. Dizia ele que poucos usavam a mão esquerda, então o lado direito da xícara era menos impuro.
Contava-me, então, o bom tio que certo dia ele estava todo concho tomando seu cafezinho quando, de repente, alguém tocou em seu ombro e falou:

- Oi, ‘Palo’, você é como eu, toma o cafezinho com a mão esquerda. Você também é canhoto?
Meu tio virou-se e constatou que a pergunta fora feita por um tipo popular da cidade, conhecido por TÔ TE AJEITADO, que usava paletó, camisa florida e gravata espalhafatosa; vendia bilhetes de loteria e tinha os beiços feridentos, parecendo que estavam acometidos de aftosa.

Tio Paulo olhou bem para os lábios feridos de TÔ TE AJEITANDO e, sem desfaçar o susto, soltou incontinenti a xícara no balcão. Daquele dia em diante deixou de tomar cafezinho com a mão esquerda...

Aracaju, 27/04/2015.

Beto Déda