quinta-feira, 17 de janeiro de 2013


O possesso


 
Há muito tempo, quando eu era garoto, ouvi de um querido tio o curioso caso de um sujeito que foi considerado possuído pelo demônio. Tentarei transcrevê-lo,  aqui, com esforço para transmitir mais ou menos o que ouvi do bondoso irmão de minha mãe.

O fato aconteceu no mês de julho – que os simãodienses chamam de mês de Santana – no início dos anos cinquenta, envolvendo um senhor de quarenta e poucos anos de idade. Ele tinha pele alva, pescoço comprido, um grande gogó e costas um pouco envergadas. Era conhecido como Janu da Várzea.

 Naquele dia ele acordara mais cedo que do costume. Acendeu o fogo, tomou um ligeiro café e aguardou que a densa neblina dissipasse, deixando lugar para o sol, que nascia meio tímido, derramar seus primeiros raios luminosos sobre as matas da Várzea da Isca. Selou o cavalo e galopou em direção à cidade.

Naquela semana Simão Dias estava em festa. Acontecia o novenário em homenagem a Nossa Senhora Santana, padroeira da cidade. As casas estavam repletas de visitantes. Raras as famílias que não recebiam parentes e amigos em seus hospitaleiros lares. Na Rua do Coité, a residência de D. Tefinha não era exceção. Ela recebia a costumeira visita dos donos da casa, alugada sob a condição de abrigar a família do proprietário nas festas tradicionais da cidade: Natal, Ano Novo, Semana Santa, festa de Santana e no dia de eleição.

Janu era sobrinho do dono da casa e também ali se hospedava. Ele chegou cedo, amarrou seu cavalo no quintal e foi cuidar de alguns negócios pendentes, como também comprar o que lhe era indispensável em seu sítio: sal, querosene e café.

Para almoço daquele dia, D. Tefinha tinha temperado, de véspera, em uma grande frigideira de barro, apetitosos lombos. Lá pelas onze e meia, depois dos trabalhos de arrumação da casa, é que o fogo de lenha foi reativado para o preparo do almoço, inclusive os saborosos lombos. O cheiro dos petiscos invadia a casa, estimulando o apetite de todo pessoal, especialmente de Janu, que desde cedinho tomara apenas um rápido café.

Quando o relógio da Matriz disparou o toque das doze badaladas, anunciando o meio-dia, soou o foguetório na Praça Barão de Santas Rosa e a banda Lira Santana, tocando seus tradicionais dobrados, desfilou pela Rua do Coité. O povo saía à rua para apreciar a fuzarca. Na casa de D. Tefinha não era diferente, todos estavam à porta, alegres aplaudindo a banda, menos Janu que fora até o quintal cuidar do cavalo que desamarrara.  




A ausência de Janu foi notada por Alice, uma solteirona que morava na vizinhança e que era vidrada no coroa. Ela foi procurá-lo no interior da casa. Assim que adentrou ao corredor, deparou-se com o Janu que, ao senti sua presença, saiu apavorado da cozinha em direção à sala, onde começou a dar tremendos pulos, com as faces contorcidas, os olhos querendo saltar das órbitas e a expressão de terror. Apavorada com aquele quadro dantesco, Alice gritou pedindo socorro.

Todos invadiram a sala e, estupefatos diante do que viam, exclamaram quase uníssonos: - Acuda, o homem está possuído pelo demônio! Em meio a gritaria infernal, D. Tefinha iniciou imediatamente uma ladainha de exorcismo:

- Ave Sant’Ana, cheia de graça, rogai ao Bom Jesus para ajudar ao pobre Janu que está com o encosto do espírito da mal.

Enquanto todos rezavam, o Janu rolava pelo chão da sala, grunhindo, com as mãos no pescoço, as unhas dilacerando os músculos, já ficando roxo. Justo naquele momento entra na casa o Bão, um experiente e idoso negro que morava na Rua do Curral. Percebendo a cena, sem retardar, ele bradou, pedindo ajuda ao tio de Janu, Seu Chico Pereira:

- Chega Chico, deixa de rezar e vamos levantar o homem que ele não está com nenhum encosto de cabouco, me ajuda aqui.  Venha!


Com muito esforço, os dois levantaram o quase desvalido “possesso”. O Bão deu um forte tapa nas costas do Janu que, escancarando a boca, vomitou um baita pedaço de lombo. O espanto foi geral. Seguido de um ligeiro silêncio, quebrado pela voz de tenor do irreverente Bão:

- Taí o demo que ele engoliu. Um pedação de lombo. Tava com fome, meu fio?

Superado o susto, com um riso amarelo e desconfiado, Janu esclareceu tudo. Sentindo o cheiro apetitoso do lombo, ele não se conteve e, aproveitando a saída do pessoal para apreciar a banda, foi até a cozinha, destampou o aribé e pegou um pedaço de lombo. Quando ouviu os passos de Alice, tentou se livrar da carne e gulosamente engoliu o pedaço de uma só vez. Foi a conta. Engasgou, ficou sem ar, apavorou-se e quase morreu. E o gostoso lombo transformou-lhe em um “possesso”, apesar de ser um fervoroso devoto de Nossa Senhora Santana.

Naquela época muitos acreditaram que foi a santa padroeira de Simão Dias quem guiou o experiente negro Bão até a casa de D. Tefinha. Mas havia controvérsia...

Aracaju, 15/01/2013

Beto Déda