A Praça de São João, Seu Nia e a festa dos Lambe-sujos e Caboclinhos.
Em minha infância a Praça de São João, em
Simão Dias, foi meu mundo de brincadeiras, de fantasias e de encantos. Naquele
local eu vi e participei de inesquecíveis acontecimentos, a maioria deles
pontilhados pela aventura e alegria comum aos garotos da época. Diversão não
faltava.
Nesta semana, depois do prazer da leitura de
um bom livro, minha memória foi despertada para fatos que ocorreram na saudosa
Praça ou Parque São João, no início dos anos 50.
O ponto que despertou minha memória para a
praça foi um rapaz podando uma árvore e que caçoou de minhas advertências para evitar
que cortasse o galho em que estava sentado.
Narrei para o improvisado lenhador o caso de
um conterrâneo que, ao podar uma árvore da Praça São João, caiu junto com o
galho (se descuidou e se sentou na extremidade que estava sendo cortada!). Fraturou o braço e passou a ser chamado de “Hosana
das Alturas”. E a queda foi motivo de gozação por muito tempo entre os
moradores do local.
Na mente de um septuagenário de boa memória,
uma lembrança leva a outra. E surgiram outras recordações que repasso aqui.
Lembrei-me também da aventura do amigo Hélio
de Seu Otávio que, com medo de um boi cara preta, subiu em um pé de tamarindo e
depois não sabia descer. Passou a chorar e gritar pedindo socorro. Seus gritos
foram ouvidos pela saudosa Teté (Tefinha Alves) que chamou um senhor forte,
conhecido como Seu Nia, e com ajuda dele socorreram o garoto.
Teté era uma querida amiga de minha família e
morava na Rua do Coité, nas proximidades da Praça de São João.
Seu Nia era um negro simpático e muito
comunicativo que trabalhava como magarefe e salgava carne do sol no matadouro municipal.
Ele era de Laranjeiras e conhecia muito bem a tradição das festas daquele município
sergipano. Falava muito dos folguedos de sua terra e, diante do interesse e
curiosidade dos que lhe escutavam, organizou uma festa dos “Lambe-sujos e
Caboclinhos” em nossa cidade. Uma verdadeira apresentação teatral a céu aberto.
O palco dos festejos foi a Praça de São João.
Tudo planejado e ensaiado com a devida antecedência. Na praça, no local onde
jogávamos bola, foram erguidas as tendas ou ocas com varas de bambus trazidas
da Fazenda “Chora Menino” do Desembargador Gervásio Prata.
Rapazes e meninos da redondeza foram chamados
para representarem os grupos dos negros e dos índios. Os representantes dos
índios eram pintados com uma tinta parecida com “roxo e terra”, ornamentados
com penas variadas e armados com arco e flecha. Os que representavam os Lambe-sujos
eram pintados com uma mistura de melaço e uma tinta preta, que deixava a pele
brilhante, e portavam uma foice de madeira. O cacique dos índios era Pedro, filho de Dona
Balbina, e o chefe dos negros era Seu Nia.
Participei dos ensaios e ainda hoje me lembro
do refrão dos cânticos de ambos os lados. Os Lambe-sujos gritavam: “Samba
negro, que branco não vem cá. E se vier pau há de levar!”. Enquanto o refrão
dos caboclinhos era: “Prender negro? Rei dos Caboclos!”.
Fiz todos os preparativos para sair como um
caboclinho. Além de participar dos ensaios, juntei as mais bonitas penas de
galinhas, patos e pavões para fazer o cocar e as vestes de índio.
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O Caboclinho Beto |
Mas não deu certo. Eu era muito magro, sofria
da vesícula e minha mãe não aprovou minha pretensão. Justificou a desaprovação
alegando que a tinta vermelha na minha pele poderia provocar uma reação em meu frágil organismo. Fui
forçado a entender sua preocupação e tive que repassar para o amigo Miraldo
(filho de Zefinha de Zeca de Quincas) as penas escolhidas e bonitas que tinha
colecionado. E o Miraldo não me poupou da inveja ao vê-lo com trajes de índio.
A festa ocorreu em uma tarde de domingo. Lembro-me que no portão de minha casa foram
colocadas várias cadeiras para meus pais e meus irmãos se sentarem e assistirem
o desenrolar da batalha.
Era uma apresentação formidável, narrando a
batalha que teve como origem o rapto de uma índia pelos negros. No centro da
Praça, começava o embate entre o Cacique (Pedro de Dona Balbina) e o Chefe dos
Negros (Seu Nia). O índio era o vencedor, libertava a princesa e aprisionava os
negros. Então os caboclinhos saíam guiando os lambe-sujos para pedir aos
assistentes uma moeda para alforria.
A festa dos Lambe-sujos não se tornou tradição
em nossa terra, mas o espetáculo a céu aberto programado por Seu Nia se tornou
um fato inesquecível para muitos rapazes e meninos que viveram naquela época
nos arredores da Praça de São João.
Tais lembranças enriquecem o cabedal do meu
viver e relembrá-las equivale a um prazer imenso; renovam minhas forças. Não é
à toa que os meus próximos percebem o brilho nos meus olhos quando me dedico a
recordar os bons tempos.
Aracaju,
19/09/2018.
BETO
DÉDA