Um
inesquecível texto escrito por meu pai.
Nestes
últimos dias, recuperando-me de uma leve entorse no pé, fiquei repousando em casa. E preencho meu tempo lendo alguns livros e, principalmente, relendo textos
escritos por meu saudoso pai. Assim é
que me deparei com uma pitoresca estória que ele escreveu sobre o sepultamento
de um oficial da Guarda Nacional.
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Carvalho Déda na redação do jornal "A Semana". |
Como
é do meu feitio compartilhar com parentes e amigos minhas emoções, posto a
seguir o referido texto.
“VÔTE, SEU ALFERES!
Escrito
por Carvalho Déda
Eu devia ter quinze anos de idade, quando assisti, ali na então Vila do
Coité, do vizinho Estado da Bahia, a uma tragicomédia.
Vítima de terrível
indigestão, falecera, na véspera, o honrado Alferes Raimundo Santos, mais
conhecido por Alferes Raimundo Pé-de-Ferro. Era um oficial da Guarda Nacional e
residia no lugar “Trambeque”, a cerca de três léguas de distância da Vila, onde
ocorrera o sepultamento.
Causou estranheza o fato de
o corpo não ter sido levado diretamente para a Igreja, onde receberia a
“encomendação” a que fazia jus sua alma de bom católico e homem de bem. Nem ao
menos fora levado diretamente para o cemitério. Foi levado para a oficina do
marceneiro Chico Vitor. Os donos do defunto explicaram: – para consertar a
tampa do caixão que não fechava.
O marceneiro Chico Vítor, de mangas arregaçadas, óculos na ponta do
nariz, careca morena polida, foi tomando as novas medidas para o remendo da
urna mortuária. Foi quando vi a cena que se agarrou para sempre na minha retina
de menino curioso. O finado alferes Raimundo dentro do esquife apresentava uma
inchação exagerada, que impedia o fechamento da urna, feita de boa peroba. Com
sua farda de alferes da “briosa”, o defunto, notadamente a barriga, crescia em
sentido vertical. A calça já não alcançava o volumoso ventre onde os gases da
indigestão se acumulavam, nem ao menos cobria os bordados vermelhos de
pé-de-galinha, na alva ceroula de algodão. A vistosa túnica azul marinho, de
botões e alamares dourados, andavam muito longe de abotoar, deixando nua a
barriga de um moreno liso de peles esticadas, ameaçando estourar.
O Alferes morrera empanzinado e a cada minuto que passava a barriga ia
crescendo, lotada de gases, impedindo que a tampa do caixa funcionasse.
Enquanto o marceneiro cuidava da nova tampa, a vistosa fardeta do
defunto ia despertando a curiosidade popular. E foi juntando gente. Foi quando
apareceu o saldado de polícia Osório dos Santos, um sarará que era a única peça
militar do destacamento local.
Quando o saldado viu o defunto fardado, empertigou-se, trepou-se nos
seus calcanhares e fez a continência disciplinar. Em seguida, determinou, com
autoridade: - o enfermo fica embargado. Tem direito às honras militares e eu
vou preparar a “companhia de guerra”.
Ele mesmo, sozinho, era o único soldado que compunha a “companhia de
guerra” para as continências fúnebres indispensáveis. E saiu para as
providências.
Afinal, o mestre Chico Vítor declarou corrigida a tampa do esquife, que
foi fechado e conduzido com grande acompanhamento de curiosos para o cemitério,
onde seria aguardada a “companhia de guerra”. E lá vai, a passo triste, o
enterro do alferes. No cocuruto da tampa do caixão, o quepe de oficial com a
sua pala preta de oleado e os seus bordados amarelos.
No cemitério, para que corresse alguma “viração” no cadáver, o caixão
foi descoberto. O sol nordestino, mais quente às onze horas, incidia
impiedosamente na barriga inchada do defunto.
A “companhia de guerra” demorava, mas a demora era justificável, pois o
soldado Osório, como único responsável pela cerimônia, ainda estava dando a
última “mão de kaol” no material de guerra: botões da túnica, cabo de latão do
refle “rabo-de-galo” e fivela do cinto com “patrona” de sola.
Por fim, a “companhia” foi chegando. O soldado, com sua farda azul
surrada, refle balançando na cintura, “comblain” ao ombro, marchava sozinho,
mas garbosamente, sob o seu próprio comando. Ao chegar em frente ao caixão
fúnebre, comandou-se, com bossa militar: - Alto! Deu um passo à
retaguarda, tomando posição de atirador. O suor corria abundante pelo seu rosto
cor de manga-rosa. Olhando para a assistência, comandou-se: - Companhia,
atenção! Fôôô…go!...
Chico Vítor, Silvestre fiscal e Mestre Xandu tamparam os ouvidos e
fecharam os olhos para quebrar a esperada violência do tiro de festim. Mas a
carabina do soldado fez “quê-crêfo”, negou fogo! O soldado explicou: - Cartucho
velho e uma desgroja repetiu a munição fria, resto da guerra do
Paraguai!...Não desanimou, porém, e brado de comando: -Companhia! Fô ô go! A carabina tornou a “mentir fogo”, mas, justamente neste momento, por
uma coincidência triste, ouviu-se um estranho estampido fofo, que não partiu da
arma do soldado, mas do próprio defunto. O estranho estampido foi seguido de um
terrível fedor que encheu o cemitério. Chico Vítor, Silvestre e Mestre Xandu
tiraram os dedos dos ouvidos e taparam as narinas.
A barriga do Alferes havia estourado! Com violência, dos gases
acumulados, substituíram, na cerimônia, a velha “comblain” do disciplinado
soldado. A barriga do defunto estourou pelo lugar próprio.
O soldado, que era ele sozinho a sui generis “companhia de
guerra”, vermelho como uma baeta, suando como tampa de chaleira, jogou a
carabina ao chão, tapou o nariz e exclamou fanhoso: - ‘Vôte’,
seu Alferes!...”
Depois
desta leitura, espero que não tenha lhe faltado um bom sorriso.
Aracaju,
02/10/2023
Beto
Déda