Tio Totonho: seus ditos e sua
longevidade...
Recentemente dois fatos
levaram-me a lembrar do meu saudoso tio Totonho, irmão de minha avó Olívia
Déda.
A primeira lembrança aconteceu ao ler um
artigo de um jornalista, que em sua crítica às patifarias do atual governo, dizia
que os mandatários do Brasil pensam que somos todos beócios.
Essa palavra me fez
lembrar o meu tio Totonho. Ele costumava usar o termo beócio ao se
referir aos seus desafetos, de modo a evidenciar as imbecilidades e ignorância por
eles praticadas. Aí então, exclamava em voz alta, ritmado com o toque de sua
bengala:
-
Fulano de tal, aquele beócio, continua cometendo imbecilidades...
Se vivo estivesse, certamente diria que beócios são os que estão em Brasília envergonhando o país.
No sentido oposto,
quando queria elogiar alguém, passava a mão em volta da boca e dizia: “Belo Moço”. E repetia as palavras “belo moço”, elevando a cabeça para
demonstrar sua sinceridade – tal e qual aparece entre tio João e meu irmão
Washington Oscar, na foto que reproduzo abaixo.
A segunda lembrança
aconteceu diante de uma indagação realizada, via telefone, por meu bom primo
Paulo César, lá da região do Jatobá, onde curte as ondas de uma bonita praia.
Indagou o Paulo César qual o nome completo do nosso tio Totonho. Então as
lembranças afloraram.
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Meu tio era alto,espigando, simpático e
elegante mesmo. Pilhérico, mas tinha o
pavio curto. Quando pisavam em seus calos
a resposta era imediata e contundente.
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O nome de batismo do
meu tio era ANTÔNIO GARCIA SILVEIRA. Ele nasceu no dia 22 de fevereiro de 1882,
na freguesia de Patrocínio do Coité, que hoje é o município denominado Paripiranga (Ba). Era filho de José Alves dos Anjos e D. Maria
Garcia Silveira. Ainda moço foi para casa de seus irmãos em Vila Nova da Rainha, que hoje e conhecida como a cidade de Senhor do Bonfim, no Estado da Bahia. Depois mudou-se para Salvador, onde foi trabalhar como operário em uma indústria têxtil. Casou-se,
e algum tempo depois ficou viúvo. Veio morar em Simão Dias e aqui casou pela
segunda vez. Passados alguns anos, sua mulher faleceu e passou a sofrer novamente com a solidão
da viuvez.
Conheci meu tio Totonho
quando ele morava no povoado Oiteiros, e vinha passar os fins de semana na casa
de minha avó Olívia. Quando chegava, portava uma longa barba branca que eu sempre admirava, mas a admiração durava
pouco, porque a primeira coisa que ele fazia era ir ao barbeiro para cortá-la.
Fazia isto na barbearia que ficava em frente à casa de tio João Déda, na Rua da
Lama. O barbeiro era Seu Luiz, casado com uma filha de dona Jovem
Nascimento e era pai de Manoel e Ulisses. Eu olhava para o rosto escanhoado do meu
tio e indagava por que razão cortara sua bonita barba. E ele, passando a mão em
volta da boca e depois coçando o gogó, respondia demonstrando impaciência:
“Ora,
pois! Pra remoçar!”
A lembrança do tio me
fez cultivar, quando passei dos cinquenta anos, a barbicha branca que até hoje
conservo.
Depois que enviuvou, meu
tio passou a morar na casa de minha avó. Gostava de tomar uns pileques e ia até
o escritório de meu pai (na época o escritório de advocacia do meu pai ficava
na Rua dos Ribeiros, entre as casas de Seu Agenor Viana e a de Gervásio, Arlinda
e Amélia). Meu pai alugara aquela casa ao Seu Manoel Dantas, que era conceituado
farmacêutico da cidade. Lembro-me bem que um dia meu tio Totonho apareceu no
escritório e começou a falar alto, quase em tom de discurso. Eu não sabia do
que se tratava, mas fiquei curioso com seu ar incisivo e eloquente. Meu pai
notou minha curiosidade e fez um sinal, balançando a mão fechada com o dedo
polegar em direção à boca, para indicar que o tio andara bebendo. Em seguida
soube que o tom mordaz de sua fala era contra um desafeto.
Meu pai gostava muito
do tio e cuidou dele quando minha avó faleceu. Depois, com a morte de papai,
eu passei a cuidar do tio. Ele era pouco proseador, mas gostava de narrar piadas
picantes. Tinha o pavio curto. Brabo mesmo! Ninguém tentasse pisar em seus
calos que a resposta era incisiva e pontual. Pegava pra valer...
Lembro-me que em um
domingo, meu irmão Artur esteve nos visitando em Simão Dias; ele e um colega
juiz almoçaram em minha casa. Antes do almoço, tomamos um aperitivo e servi
também ao meu tio. Conversávamos animadamente e repetimos a dose para todos.
Artur olhou para o copo do meu tio e se preocupou. O velho já passava dos 90
anos, tomou a terceira dose e depois, olhando para Artur, disse que faria uma
coisa que os mais novos não ousariam. Dobrou uma perna, formando um quatro, e
simulou um balanço. Seu gesto dissipou a preocupação do meu irmão e todos
sorriram com a faceirice do tio. E ele empinou a cabeça e vociferou: “Viu aí, danado!”
Certa vez apareceu para
falar comigo um senhor que morava próximo à casa do tio (casa que aluguei ao
Seu João Conceição Neto – João de D. Clarita - e que ficava no fundo de sua
loja de tecidos). Então o tal vizinho
disse que eu teria que tomar uma providência, porque o velho ficava nu, se
mostrando para o povo da rua. Fui verificar.
Era uma tarde de calor infernal. A
porta da casa estava fechada, mas o janelão estava aberto. O velho estava
sentado em uma preguiçosa no fundo da sala, nu, mostrando a pela branca coberta
de esvoaçantes cabelos cor de neve. Para se ver o velho tinha que ser curioso e
perscrutar a casa olhando pela janela. Indaguei a outros moradores da rua e
ninguém confirmou que o meu tio andava se expondo nu. Então fui até o
reclamante e ele, com a cara mais lisa do mundo, disse que o pessoal não fora
olhar da janela. Aí então eu fui tão impulsivo quanto meu tio: mandei o tal “amigo”
procurar o que fazer e deixasse de se enxerir na janela dos vizinhos. Aconteceu
então um pequeno entrevero, do jeito que, na época, eu gostava de aprontar...
Lá pelo começo dos anos
setenta, surpreendentemente, esteve em Simão Dias um senhor simpático de nome
Sizenando Silveira, que também era filho de um irmão de tio Totonho. Ficou
hospedado na casa de tio Sininho. O Sizenando morava na cidade de São Paulo,
onde era o titular do Cartório de Registro Civil de Pessoas Jurídicas - 2º
Ofício.
Contava o Sizenando que
foi graças aos safanões recebidos do tio Totonho que ele passou a estudar as
primeiras letras. E mostrava-se realmente agradecido. Presenteou o tio com uma
bonita e grande mala (adornada com selos dos países que tinha visitado) com
ternos brancos de linho e um chapéu panamá. Além do mais, passou a mandar pelo
correio uma mesada que, parece-me, correspondia a um salário mínimo. Não era
pouca a alegria do meu tio. Passou a andar pelas ruas de Simão Dias, diariamente,
usando com elegância o terno (que ele
chamava de fado branco) e o chapéu panamá. E sempre era visto em uma barbearia
contando piadas picantes, que ele dizia ser de autoria de Camões ou do Bocage...
Certa vez a pessoa que
cuidava da mesada do tio me informou que ele estava esbanjando dinheiro com
raparigas da Ponta da Asa. Não dei atenção ao informe. Dias depois, estava
trabalhando no BNB e recebi um recado que devia me dirigir com urgência ao beco
entre o Banco e o Cartório de tio Sininho, para ver a presepada do Totonho.
Fui lá. Cheguei de
mansinho, sem ser notado pelo tio, que estava ao lado de uma mulher. Ele com a braguilha
aberta e a dona com a ponta do dedo tocava e sentia a flacidez do cansado pênis.
Então ele levantava a cabeça e arrematava:
“Viu
aí, danada! Toma...”
Em seguida, fechava a
braguilha, guardando sua coisa sempre mole, e metia a mão no bolso para tirar
uma cédula de cinco cruzeiros e pagar a paciente rapariga.
Retirei-me sem ser
visto e aprovei a diversão do tio. Na época ele já tinha ultrapassado os
noventa e poucos janeiros bem vividos. Para a pessoa que também protegia meu
tio, falei para não se preocupar. O fato que presenciei tinha um grande valor
para o querido idoso e, melhor ainda, não causava qualquer mal. Além do mais:
demonstrava que ele não tinha perdido a esperança e nem demonstrava acanhamento em tentar
fazer o que gostava.
No ano de 1975 fui
trabalhar em Jequié-BA. Não tinha como levar o meu tio e ele passou a ser
cuidado pelo primo Wellington de tia Vina, que o trouxe para Aracaju.
Em 1976, encontrei pela
última vez com o querido tio Totonho. Não esqueço que foi a primeira vez que vi
lágrimas descendo entre as rugas de seu quase centenário rosto. Ele estava abraçado com meu filho
primogênito. E com ele também chorei.
Poucos meses depois, senti
novamente o sal das lágrimas ao saber que meu tio-avô tinha ingressado em outra
dimensão.
Aracaju,
25/02/2019
Beto
Déda