terça-feira, 26 de março de 2013


Na  tipografia, merendando pão quente, café forte e doce de leite.

 

Recentemente meu sobrinho João Déda, que é um excelente gourmet, iniciou no facebook postagens sobre como degustar as coisas boas da vida, especialmente de pratos com iguarias deliciosas. Lendo seus escritos e mesmo percebendo que cuidam de cardápios refinados, lembrei-me dos velhos tempos quando os lanches, embora simples, também eram saborosos e compartilhados alegremente com inesquecíveis amigos. Para que não se percam no tempo, repasso aqui essas recordações para meus queridos netos e também para aqueles que viveram aquela época e gostam de relembrar fatos de nossa terra.

O lampião 'Petromax'
Meu primo Valter Oliveira era um tipógrafo de mão-cheia. Durante um período ele foi o chefe da oficina d’A Semana, e cuidava com esmero para que o jornal circulasse certinho aos sábados pela manhã. Dessa forma, a impressão do jornal estava sempre concluída nas tardes de sextas-feiras. Acontecia, porém, em algumas ocasiões, que a composição ou a impressão atrasava e tínhamos que fazer serão, passando das vinte duas horas, quando o motor da usina parava de gerar emergia para a cidade. Aí, então, os trabalhos continuavam sob a luz de potentes lampiões que funcionavam a querosene, com camisa de seda incandescente, chamados “petromax”. Era em noites assim que se comentava sobre futebol, cinema e se merendava o pão quente da Padaria de Seu Oscar Rocha, que ficava ali próximo. Àquela hora da noite, é claro, a loja da padaria já estava fechada, mas os padeiros nos atendiam por uma porta cortada ao meio, que ficava ao lado da Rua Mulungu, defronte ao prédio que pertencia ao Seu Dorinha, onde funcionou o Banco do Brasil.

Eu era o encarregado de comprar os pães. A recomendação de Valter é que deveriam ser bem amanteigados e nisso os padeiros não faziam economia, usando grande espátula, de modo que manteiga escorria pelas mãos.  Em uma lata, com água e pó de café, sobre um fogo feito com papel picado, retirado debaixo da mesa da guilhotina, fazíamos em poucos minutos um café forte (não se coava o pó) de melhor qualidade, que degustávamos com o saboroso pão quente amanteigado. Uma delícia que até hoje, ao lembrar, me deixa com água na boca.

Esses serões continuaram acontecendo depois, sempre que ocorria atraso na composição do jornal, quando o chefe da tipografia era Luiz Santa Bárbara.

No início das tardes, meu primo Armando passava pela tipografia com um tabuleiro de copos de doce de leite e de banana feitos por tia Pequena. Eram vendidos tanto lá como na tenda da fábrica de calçados Sidon, que ficava próximo e pertencia ao meu tio Paulo, onde também trabalhava o tio João Déda. O doce era transportando em pequenos copos de vidro, coberto com papel manteiga, para proteger das moscas e dos dedos dos gulosos.   Com a colherinha detonávamos o papel, fazendo um ruído característico, e nos deliciávamos com a guloseima.

Certa tarde, Luiz Santa Bárbara e um dos auxiliares, o Luiz Carlos, filho de Seu Isidro, iniciaram uma discussão sobre quem mais gostava do doce de leite. Então o Luiz Carlos afirmou que seria capaz de comer mais de dez copos de doce, o que foi contestado pelo chefe. Resolveram então pagar para ver. Acertam, por fim, que o Santa Bárbara pagaria todo o doce, caso Luiz Carlos comesse mais de dez. Sacramentada a aposta, Luiz Carlos começou a saborear o doce. Quando estava no sexto copo, afirmou que teria que tomar um pouco d’água. Discutiram esse ponto e no fim foi acordado que ele teria que tomar uma cuia cheia (metade de uma lata de queijo do reino, vasilha que era usada para beber água). Depois de saciar a sede, o colega Luiz Carlos passou a comer o doce bem devagar... e não passou do nono copo. Engulhou, começou a vomitar e desistiu do confronto, afirmando desanimado:

- Vôte! Que enjoo arretado. Nunca mais vou comer doce de leite...

Perdida a aposta, com o semblante triste, pálido e suando frio, ele foi para casa cedo, curtindo uma dor de barriga sem limites.

Ainda durante as tardes, depois da impressão de uma página do jornal – era impressa uma página por vez, no decorrer da semana –  jogávamos basquetebol em uma quadra improvisada no apertado quintal da tipografia. Nunca passavam de seis jogadores; normalmente éramos quatro. Jogo bem divertido, com regras ali mesmo acertadas, só parávamos quando todos estavam bastante cansados e suados. Depois de um ligeiro descanso, pensávamos no lanche. Aí também não deixava de ter o gostoso pão da Padaria de Seu Oscar, mas o acompanhamento não era a manteiga nem o forte café. Comprávamos uma lata de quitute e duas garrafas de refrigerante Caçulinha no Bar de Pedro Mendes, que ficava vizinho à tipografia, era parede-meia, como se dizia na época. O lanche era dividido salomonicamente e consumido com avidez.
Por fim, para ser fiel a narração deste fato, não nego que se seguiam arrotos escancarados que, quando ouvido por um adulto, eram devidamente esculachados...

E os dias se passavam, o jornal era editado, brincávamos bastante, merendávamos e, como diz o colega e amigo Zé Raimundo Araújo:

Éramos felizes e, diferente do jargão poético, sabíamos que éramos!”

 

Aracaju, 25/03/2013

Beto Déda