quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Os rolos espalhadores de tinta da impressora, o velho tipógrafo e o artesão.

O jornal “A Semana” era editado por meu pai em tipografia própria, situada em um salão nos fundos da casa onde também funcionava seu escritório de advocacia: Rua Dr. Joviniano de Carvalho nº 37, em Simão Dias.
Impressora semelhante à d'A Semana
A impressora era uma rotativa francesa, antiga, movida a mão, com manivela igual as usadas nas casas de farinha do interior.
A tinta era espalhada na máquina de impressão através de rolos, espécies de cilindros em que o eixo de ferro era coberto com gelatina, de modo a receberem e distribuírem a tinta uniformemente sobre a matéria a ser impressa (a chapa com tipos e clichês).
O rolo de espalhar tinta
Os rolos que acompanharam a impressora se desgastaram e para reformá-los meu pai chamou o Sr. Monte Santo, que tinha sido tipógrafo, era conhecedor da arte, embora não mais apresentasse condições de exercer a profissão. O Monte era um senhor idoso, branquelo, com o rosto parecendo inchado, baixo, mancava de uma perna e usava muletas para andar.  Sempre que pegava qualquer coisa, aproximava bem dos olhos, para melhor enxergar. Ele era míope e, diante de nosso olhar curioso, dizia ter sido consequência da profissão, advertindo-nos para termos cuidados com nossa arte, senão também teríamos problemas de visão no futuro.
Para cobertura dos rolos, Seu Monte nos mandava cortar a gelatina em pequenos pedaços, colocava-os em uma lata, levando-os em seguida ao fogo para derreter. Os eixos dos rolos eram enrolados com cordas e colocados em fôrmas cilíndricas de zinco, besuntada de mel e, em seguida, enchidas com a gelatina derretida. Quando esfriava, o rolo era retirado da forma e estava pronto para receber a tinta.
Em um desses dias, o Luiz Santa Barbara, que era o chefe da tipografia, perguntou ao seu Monte porque não usar o óleo de mamona em lugar do mel para facilitar as retirada dos rolos das fôrmas.  E ele, compenetrado, dizia que óleo de qualquer espécie não era bom, o melhor mesmo era o mel porque dava mais consistência aos rolos.
Na verdade o mel era bom, mas não o melhor lubrificante. O certo é que era o preferido por seu Monte, que não deixava de levar a sobra para seu deleite. E ao lidar com os rolos, muitas vezes o velho era surpreendido lambendo as mãos sujas de mel, chupando os dedos com guloso prazer para limpá-las do doce melado.  E o Luiz, piscando o olho, dizia que assim estava justificado o uso do mel...
Lembro-me agora que uma das fôrmas para rolos estava imprestável, toda amassada e com furos. Então papai me chamou e mandou que eu a levasse ao seu José Machado para fazer outra igual, esclarecendo que já tinha conversado com ele sobre o assunto.
O Sr. José Machado era paraplégico, mas isso não limitava sua força de vontade de trabalhar e cuidar do sustento de sua família. Ele era um artesão que trabalhava com zinco e folhas-de-flandres, fazendo bicas, chocolateiras, copos, candeeiros, funil e várias espécies de utilidades, inclusive fôrmas de rolos. Era conhecido como Seu Zé Aleijado, mas, com justa razão, não gostava do qualificativo, porque o discriminava.
Pois bem. Fui até a casa do seu Zé Machado. As portas estavam abertas e avistei o chão coberto de peças por ele fabricadas. Bati palmas, chamei e ninguém atendeu. Então comecei a gritar: - Oi de casa, seu Zé Aleijado está?
Nada de resposta. Logo depois ele apareceu. Olhou para mim e disse que seu nome era José Machado, que não gostava de apelido, advertindo-me, com sua voz rouca:
– Garoto, não me venha com alcunha, entendeu?
Não entendi bem o que ele dissera, mas balancei a cabeça confirmando. Em seguida, observando a fôrma que eu lhe entregava, ele afirmou que já sabia do que se tratava. Então indaguei:
 - Quando a fôrma estará pronta, seu Zé Aleijado...
Ele voltou-se pra mim, balançou a cabeça, e exclamou: - Como é meu nome, menino?
E eu, apavorado, sem pensar, disse: - Desculpe seu Zé Aleijado!
O simples olhar do artesão fez-me perceber minha tripla mancada e acelerar minhas pernas em louca carreira em direção à tipografia, sem olhar pra trás.
Dias depois, quando papai mandou-me pegar a fôrma, fiz um pedido patético ao Luiz Carlos Santos (Luiz de seu Izídio), que era aprendiz como eu, transferindo-o a incumbência de ir até a casa do seu Zé Machado; advertindo-o, é claro, para não usar o tal apelido.
 E o Luiz Carlos atendeu-me, livrando-me de mais um vacilo...

Aracaju, 13/01/2015
Beto Déda