Os rolos espalhadores de
tinta da impressora, o velho tipógrafo e o artesão.
O jornal “A Semana”
era editado por meu pai em tipografia própria, situada em um salão nos fundos
da casa onde também funcionava seu escritório de advocacia: Rua Dr. Joviniano de
Carvalho nº 37, em Simão Dias.
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Impressora semelhante à d'A Semana |
A impressora era
uma rotativa francesa, antiga, movida a mão, com manivela igual as usadas nas
casas de farinha do interior.
A tinta era
espalhada na máquina de impressão através de rolos, espécies de cilindros em que
o eixo de ferro era coberto com gelatina, de modo a receberem e distribuírem a
tinta uniformemente sobre a matéria a ser impressa (a chapa com tipos e
clichês).
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O rolo de espalhar tinta |
Os rolos que
acompanharam a impressora se desgastaram e para reformá-los meu pai chamou o
Sr. Monte Santo, que tinha sido tipógrafo, era conhecedor da arte, embora não
mais apresentasse condições de exercer a profissão. O Monte era um senhor
idoso, branquelo, com o rosto parecendo inchado, baixo, mancava de uma perna e
usava muletas para andar. Sempre que
pegava qualquer coisa, aproximava bem dos olhos, para melhor enxergar. Ele era
míope e, diante de nosso olhar curioso, dizia ter sido consequência da profissão,
advertindo-nos para termos cuidados com nossa arte, senão também teríamos
problemas de visão no futuro.
Para cobertura dos
rolos, Seu Monte nos mandava cortar a gelatina em pequenos pedaços, colocava-os
em uma lata, levando-os em seguida ao fogo para derreter. Os eixos dos rolos
eram enrolados com cordas e colocados em fôrmas cilíndricas de zinco, besuntada
de mel e, em seguida, enchidas com a gelatina derretida. Quando esfriava, o
rolo era retirado da forma e estava pronto para receber a tinta.
Em um desses dias,
o Luiz Santa Barbara, que era o chefe da tipografia, perguntou ao seu Monte
porque não usar o óleo de mamona em lugar do mel para facilitar as retirada dos
rolos das fôrmas. E ele, compenetrado,
dizia que óleo de qualquer espécie não era bom, o melhor mesmo era o mel porque
dava mais consistência aos rolos.
Na verdade o mel
era bom, mas não o melhor lubrificante. O certo é que era o preferido por seu
Monte, que não deixava de levar a sobra para seu deleite. E ao lidar com os
rolos, muitas vezes o velho era surpreendido lambendo as mãos sujas de mel,
chupando os dedos com guloso prazer para limpá-las do doce melado. E o Luiz, piscando o olho, dizia que assim estava
justificado o uso do mel...
Lembro-me agora que
uma das fôrmas para rolos estava imprestável, toda amassada e com furos. Então
papai me chamou e mandou que eu a levasse ao seu José Machado para fazer outra
igual, esclarecendo que já tinha conversado com ele sobre o assunto.
O Sr. José Machado era
paraplégico, mas isso não limitava sua força de vontade de trabalhar e cuidar
do sustento de sua família. Ele era um artesão que trabalhava com zinco e
folhas-de-flandres, fazendo bicas, chocolateiras, copos, candeeiros, funil e várias
espécies de utilidades, inclusive fôrmas de rolos. Era conhecido como Seu Zé
Aleijado, mas, com justa razão, não gostava do qualificativo, porque o
discriminava.
Pois bem. Fui até a
casa do seu Zé Machado. As portas estavam abertas e avistei o chão coberto de
peças por ele fabricadas. Bati palmas, chamei e ninguém atendeu. Então comecei
a gritar: - Oi de casa, seu Zé Aleijado
está?
Nada de resposta. Logo
depois ele apareceu. Olhou para mim e disse que seu nome era José Machado, que
não gostava de apelido, advertindo-me, com sua voz rouca:
– Garoto, não me venha com alcunha, entendeu?
Não entendi bem o
que ele dissera, mas balancei a cabeça confirmando. Em seguida, observando a fôrma
que eu lhe entregava, ele afirmou que já sabia do que se tratava. Então indaguei:
- Quando
a fôrma estará pronta, seu Zé Aleijado...
Ele voltou-se pra
mim, balançou a cabeça, e exclamou: - Como
é meu nome, menino?
E eu, apavorado, sem
pensar, disse: - Desculpe seu Zé Aleijado!
O simples olhar do
artesão fez-me perceber minha tripla mancada e acelerar minhas pernas em louca
carreira em direção à tipografia, sem olhar pra trás.
Dias depois, quando
papai mandou-me pegar a fôrma, fiz um pedido patético ao Luiz Carlos Santos
(Luiz de seu Izídio), que era aprendiz como eu, transferindo-o a incumbência de
ir até a casa do seu Zé Machado; advertindo-o, é claro, para não usar o tal apelido.
E o Luiz Carlos atendeu-me, livrando-me de
mais um vacilo...
Aracaju, 13/01/2015
Beto Déda
Obrigada pela rica postagem Beto Déda!
ResponderExcluirPor incrível que pareça, eu ando pesquisando sobre o jornal A Semana. Principalmente sobre as xilogravuras que são presentes neles! Pude ter o acesso a esse material riquíssimo no Memorial da Cidade de Simão Dias, onde por meio de uma pesquisa pude perceber o valor que essas imagens significou para a sociedade simãodiense, durante o período de circulação do jornal.
Seu pai, foi um homem muito importante para a nossa querida Simão Dias, e precisa ser lembrado sempre!
Att, Amanda de Oliveira Santos
Acadêmica no curso de História da Faculdade AGES