quinta-feira, 25 de outubro de 2012


 A Praça de São João, as tanajuras, o Caiçá e as sanguessugas


Em Simão Dias, um dos locais preferidos pelas crianças era Parque Cel. Zacarias de Carvalho, conhecido como Praça São João, porque ali estava localizado o Cemitério São João Batista. Havia muitas árvores: tamarindeiros, fícus benjamim, acácias-amarelas, eucaliptos e um frondoso pé de “olho de boi”. No centro do parque tinha um monumento que a criançada chamava de estátua. Era um obelisco comemorativo ao primeiro centenário da Freguesia de Santana de Simão Dias.


Os tamarindos do parque

Das árvores do parque a maiores lembranças são os frutos dos tamarindeiros e as sementes de “olho de boi”.


 Os tamarindos maduros nós chamávamos de “chocolate” ou simplesmente “chocó”, pela cor marrom-escuro, lembrando a semente do cacau. Com eles fazíamos um ponche azedinho e muito gostoso. Quando queríamos atrapalhar a filarmônica “Lira Santana” chupávamos ostensivamente bajes de tamarindo, deixando os músicos com água na boca, dificultando o sopro dos instrumentos. Era subindo nos tamarindeiros que nos protegíamos do gado que levavam para o Matadouro municipal. Certa feita o garoto Hélio, que morava em um sítio próximo ao Hospital, subiu até o alto de um tamarindeiro e não soube descer. Começou a chorar e gritar, chamando a atenção de todos que por ali passavam. Foi nossa querida Teté (Tefinha) que procurou ajudá-lo, chamando o Seu Nia para descer o traquina. O velho Nia era um senhor forte que trabalhava no Matadouro, fazendo carne de sol, era o responsável pela organização da festa dos caboclinhos ali no parque.
A sementes de "Olho de boi"


As sementes de “olho de boi” são compactas, lisas e bonitas. Usávamos para pregar sustos nos colegas, e o fazíamos tocando-as quentes nos braços dos desprevenidos, depois de esfregarmos no cimento para esquentá-las com o atrito. Diziam que era medicinal e o santo remédio pra curar terçol.  As meninas usavam para brincar de “pinto-galo”.



"Cai, cai, tanajura na panela de gordura..."

Em dias de chuva a praça era invadida por saúvas voadoras, e cantávamos:
“Cai, cai tanajura na panela de gordura...”.  Então espetávamos as grandes formigas em um palito para escutar o ruído característico da flexão das asas, como se fossem helicópteros. E admirados, olhávamos Serafim, o garoto mais alto da turma, assar as tanajuras em um foguinho de folhas secas e comê-las, deliciando-se. Muitos anos depois é que soube que em restaurantes chiques de Nova Iorque um prato de formigas torradas era muito apreciado e custava uma fortuna...

A pelota ou couraça

No parque tinha uma área sem árvores, onde jogávamos futebol. As peladas eram disputadas com bola de borracha ou com bexiga de boi, que pegávamos no matadouro municipal que ficava ali perto. Raramente usávamos a pelota, uma bola de couro com um rasgo por onde passava o pito da câmara de ar. Era ali onde disputávamos boas partidas e que também rolavam brigas de socos.


Certa vez, jogando a turma do parque contra o time do Bonfim, o nosso “beque” Delmo deu uma “estrompa” no atacante adversário e iniciaram uma forte discussão, em posição de briga, com os punhos cerrados. Alguém marcou um traço no chão, entre eles, dizendo que cada lado representava a mãe do contendor.  Ambos pisaram nos lados opostos, com xingamentos, sem, contudo, iniciarem os sopapos. Então, o garoto do Bonfim, oferecendo o rosto, caiu na besteira de mandar o Delmo dar o primeiro tapa. Este não vacilou e mandou um forte soco no queixo do adversário, que caiu sem sentidos. Aflitos, pensávamos que o garoto tinha morrido. E fomos chamar o Xinoca, experiente jogador do Cruzeiro. Ele olhou a “vítima” e disse categórico:


 Foi um nocaute. Tá desmaiado”.  Salpicou água no rosto do incauto, reanimando-o. E tudo voltou ao normal.   


Depois dos jogos íamos tomar banho no poço do Riacho Caiçá, que ficava por trás do Matadouro. A água era transparente e funcionava como uma grande lupa, com aparência de poço raso, confundindo os que desconhecessem sua fundura. Com o movimento dos nadadores o pó do fundo se espalhava, tornava a água um pouco escura e o resíduo de lama grudava em nosso corpo. Diziam alguns que a lama do riacho tinha propriedades medicinais. E víamos alguns trabalhadores do matadouro passando a lama nas axilas para curar a sovaqueira. Mas o que se propagava na cidade é que no riacho tinha o caramujo vetor da doença barriga d’água (esquistossomose). Daí a preocupação que os pais tinham em não permitir que os filhos tomassem banho no Caiçá. Lá em casa, tia Esterzinha usava um modo singular de saber se tínhamos tomado banho no riacho: passava a unha na pele do braço para ver se estava impregnada do pó do Caiçá. Caso fosse positivo o castigo era severo...
A Sanguessuga


Outro lugar que tomávamos banho era o tanque (barreiro) do sítio de Seu Hilário. Lembro-me da última vez que fui ali, acompanhando meu irmão e primos. Estávamos alegremente tomando banho quando de repente notei alguma coisa estranha na pele de minha barriga. Assombrado, gritando e chorando percebi que três imensas sanguessugas estavam grudadas sugando meu sangue. O escândalo dos meus gritos despertou a atenção dos demais que vieram ao meu socorro. O mais velho da turma, o Fefeu, disse:


É sanguessuga, não pode retirar, senão os dentes seguem nas veias e chega ao coração, matando...”


 E vendo meu desespero, tranquilizava-me: - “Fique frio, magrão, aqui mesmo termos a solução para o problema. Vamos...”


E fomos ali mesmo na roça de Seu Hilário, onde ele pegou uma folha de  fumo, molhou com cuspe e passou levemente sobre as sanguessugas. Pronto, o remédio foi eficaz, as sugadoras caíram uma por uma, aliviando-me. Limpei as lágrimas e esbocei um sorriso, quando o galego exclamou:


“- Magro desse jeito, chorão e perdendo sangue... você não vai se criar!


E eu respondi, ainda soluçando: “Vou me criar sim, seu pelanca! E a gargalhada foi geral...


Imediatamente, o grande Fefeu não perdeu a oportunidade e com seus olhos bem abertos, aprontou mais uma, gritando:


 “-Turma, corre que lá vem seu Hilário com uma espingarda de tiro de sal!”


Foi aquela correria, passando com rapidez pela cerca de arrame farpado. Já na estrada, o lourão, puxando o cabelo de lado, dizia que se enganou. E todos saíam rindo a vontade...
Eta, tempo bão!



Aracaju, 24/10/2012


Beto Déda

domingo, 21 de outubro de 2012


Como o mundo perdeu um grande violonista

 

Em uma tarde desta semana, depois de fazer um brinquedo para meu neto, fui descansar no píer que eu, carpinteiro amador, construí no Lago Dourado. Apreciando a paisagem bonita, pensava como seria bom se eu soubesse tocar violão para, naquele momento, dedilhando o pinho, transmitir aos ouvidos a beleza já deslumbrada pelo sentido da visão.  E assim pensando, lembrei-me do amigo Átila Lisa, que faleceu recentemente. Ele era o pai de meu genro Flávio e, também, avô de meus netos Miguel e Marina. Toda vez que Seu Átila aparecia por aqui, passávamos horas lembrando os tempos de nossa juventude. Certa vez contei pra ele as minhas primeiras experiências vividas em Salvador e a frustração que tive ao tentar aprender a tocar violão. E lembro aqui como tudo aconteceu.

No inicio de 1963 eu estudava no Colégio Ateneu, em Aracaju, cursando o Científico. Como em Sergipe não existia Faculdade de Engenharia, a SUDENE realizou aqui um concurso para concessão de bolsa de estudo aos estudantes interessados em estudar em Salvador, onde concluiriam o científico e participariam de um curso pré-vestibular na Escola Politécnica da Bahia. Fiz o concurso, fui aprovado e me mandei para Salvador, morar no apartamento de meus primos, que chamávamos de “República dos Oliveira & Carvalho”.   Éramos seis e mais uma secretária, de nome Marisete, que cuidava da  cozinha e de outros afazeres domésticos. Quem administrava a “República” era o Presidente Zé, o mais velho dos “republicanos”.

“A “República” ficava na Rua Rockefeller, em Barris. Passei a estudar, pela manhã, fazendo o curso patrocinado pela SUDENE na Escola Politécnica da Bahia, que ficava no Bairro Federação; à noite, cursava o Científico no Colégio Duque de Caxias, no Bairro Liberdade (não consegui vaga para estudar no Colégio Central, que fica próximo). Durante a tarde ficava no apartamento, estudando.

Quando recebi a primeira grana da bolsa da SUDENE foi uma alegria imensa. Paguei o valor da mensalidade da “república”, separei o valor dos gastos com merenda e ônibus e, com o restante, comprei um bonito violão para iniciante, marca “Di Giorgio”, na loja Duas Américas, que ficava na Rua Chile.

Estava todo concho com a aquisição. Naquele mesmo dia passei a tarde dedilhando o violão, seguindo as recomendações de um folheto, que dizia ensinar a tocar em 30 dias. No fim da tarde, com muita boa vontade já dava para sair algum som aproveitável. Mal suspeitava que meu projeto musical estivesse próximo da derrocada.

Pois bem! À noite, quando todos os “republicanos” assistiam a um programa na TV, a secretária Marisete, apontando para a cozinha, onde eu estava, disse:

 Aquele ali comprou um violão e passou a tarde tocando... Estudar que é bom, necas...”

Ouvindo isso, entrei na sala e o “Presidente” Zé, terminando de passar entre os seus dentes um fio de sua camisa “volta ao mundo”, perguntou-me se era verdade a informação de Marisete. Respondi: “Sim, em termos...” E ponderei que se tratava de um belo instrumento, que tinha sido barato e que não atrapalhara meus estudos naquela tarde, nem seria problema no futuro. O grande Zé não foi na minha conversa. E sentenciou:

Meu chapa, você veio pra estudar ou pra tocar violão. Se quer aprender a tocar violão volte pra Simão Dias e se matricule na escola do Maestro Raimundo Macedo. Para ficar aqui terá que se desfazer desse tal violão. E tem mais, o prazo para se livrar do instrumento só é até a noite de amanhã. A decisão é sua...”

Decreto de “presidente” é para se respeitar, senão a república vai pro brejo. No dia seguinte fui à Escola Politécnica com o violão debaixo do braço. Procurei a colega sergipana Lindinalva, que no dia anterior tinha ido comigo à loja e também comprara um cavaquinho. Ela sabia tocar o instrumento. Perguntei se ela queria comprar o violão. Diante da resposta que não tinha dinheiro, entreguei-lhe o bendito instrumento para ela pagar se pudesse ou se quisesse. Ela ficou meio sem graça e eu - meio amargurado - mas imensamente agradecido por ela ter aceitado o instrumento.

A verdade é que, depois deste acontecido, perdi o interesse em aprender a tocar instrumentos. Mas nunca descurei de escutar uma boa música e de cantar no banheiro. Invariavelmente, ao abrir o chuveiro, solto meus pulmões e o ruído da água descendo mistura-se com o desafinado som do meu cantar...

...

Muitos anos depois, contando esta história à filha do querido amigo e primo Zé, ela olhou para o pai e falou:

- Painho porque foi tão exigente? É de se pensar que, com seu “decreto”, Simão Dias perdeu um grande violonista...

E eu completava: “Simão Dias, não! O Mundo perdeu um grande músico...” E caíamos em uma risada sem limites...

Aracaju, 19/10/2012

Beto Déda