domingo, 21 de outubro de 2012


Como o mundo perdeu um grande violonista

 

Em uma tarde desta semana, depois de fazer um brinquedo para meu neto, fui descansar no píer que eu, carpinteiro amador, construí no Lago Dourado. Apreciando a paisagem bonita, pensava como seria bom se eu soubesse tocar violão para, naquele momento, dedilhando o pinho, transmitir aos ouvidos a beleza já deslumbrada pelo sentido da visão.  E assim pensando, lembrei-me do amigo Átila Lisa, que faleceu recentemente. Ele era o pai de meu genro Flávio e, também, avô de meus netos Miguel e Marina. Toda vez que Seu Átila aparecia por aqui, passávamos horas lembrando os tempos de nossa juventude. Certa vez contei pra ele as minhas primeiras experiências vividas em Salvador e a frustração que tive ao tentar aprender a tocar violão. E lembro aqui como tudo aconteceu.

No inicio de 1963 eu estudava no Colégio Ateneu, em Aracaju, cursando o Científico. Como em Sergipe não existia Faculdade de Engenharia, a SUDENE realizou aqui um concurso para concessão de bolsa de estudo aos estudantes interessados em estudar em Salvador, onde concluiriam o científico e participariam de um curso pré-vestibular na Escola Politécnica da Bahia. Fiz o concurso, fui aprovado e me mandei para Salvador, morar no apartamento de meus primos, que chamávamos de “República dos Oliveira & Carvalho”.   Éramos seis e mais uma secretária, de nome Marisete, que cuidava da  cozinha e de outros afazeres domésticos. Quem administrava a “República” era o Presidente Zé, o mais velho dos “republicanos”.

“A “República” ficava na Rua Rockefeller, em Barris. Passei a estudar, pela manhã, fazendo o curso patrocinado pela SUDENE na Escola Politécnica da Bahia, que ficava no Bairro Federação; à noite, cursava o Científico no Colégio Duque de Caxias, no Bairro Liberdade (não consegui vaga para estudar no Colégio Central, que fica próximo). Durante a tarde ficava no apartamento, estudando.

Quando recebi a primeira grana da bolsa da SUDENE foi uma alegria imensa. Paguei o valor da mensalidade da “república”, separei o valor dos gastos com merenda e ônibus e, com o restante, comprei um bonito violão para iniciante, marca “Di Giorgio”, na loja Duas Américas, que ficava na Rua Chile.

Estava todo concho com a aquisição. Naquele mesmo dia passei a tarde dedilhando o violão, seguindo as recomendações de um folheto, que dizia ensinar a tocar em 30 dias. No fim da tarde, com muita boa vontade já dava para sair algum som aproveitável. Mal suspeitava que meu projeto musical estivesse próximo da derrocada.

Pois bem! À noite, quando todos os “republicanos” assistiam a um programa na TV, a secretária Marisete, apontando para a cozinha, onde eu estava, disse:

 Aquele ali comprou um violão e passou a tarde tocando... Estudar que é bom, necas...”

Ouvindo isso, entrei na sala e o “Presidente” Zé, terminando de passar entre os seus dentes um fio de sua camisa “volta ao mundo”, perguntou-me se era verdade a informação de Marisete. Respondi: “Sim, em termos...” E ponderei que se tratava de um belo instrumento, que tinha sido barato e que não atrapalhara meus estudos naquela tarde, nem seria problema no futuro. O grande Zé não foi na minha conversa. E sentenciou:

Meu chapa, você veio pra estudar ou pra tocar violão. Se quer aprender a tocar violão volte pra Simão Dias e se matricule na escola do Maestro Raimundo Macedo. Para ficar aqui terá que se desfazer desse tal violão. E tem mais, o prazo para se livrar do instrumento só é até a noite de amanhã. A decisão é sua...”

Decreto de “presidente” é para se respeitar, senão a república vai pro brejo. No dia seguinte fui à Escola Politécnica com o violão debaixo do braço. Procurei a colega sergipana Lindinalva, que no dia anterior tinha ido comigo à loja e também comprara um cavaquinho. Ela sabia tocar o instrumento. Perguntei se ela queria comprar o violão. Diante da resposta que não tinha dinheiro, entreguei-lhe o bendito instrumento para ela pagar se pudesse ou se quisesse. Ela ficou meio sem graça e eu - meio amargurado - mas imensamente agradecido por ela ter aceitado o instrumento.

A verdade é que, depois deste acontecido, perdi o interesse em aprender a tocar instrumentos. Mas nunca descurei de escutar uma boa música e de cantar no banheiro. Invariavelmente, ao abrir o chuveiro, solto meus pulmões e o ruído da água descendo mistura-se com o desafinado som do meu cantar...

...

Muitos anos depois, contando esta história à filha do querido amigo e primo Zé, ela olhou para o pai e falou:

- Painho porque foi tão exigente? É de se pensar que, com seu “decreto”, Simão Dias perdeu um grande violonista...

E eu completava: “Simão Dias, não! O Mundo perdeu um grande músico...” E caíamos em uma risada sem limites...

Aracaju, 19/10/2012

Beto Déda

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