A moça bonita vestida de cigana.
Uma das coisas que gosto é ouvir música. Em minha oficina de armengues,
no Lago Dourado, me divirto fazendo artesanato e ouvindo cópias de canções
antigas que me foram presenteadas por meu querido cunhado Haroldo (aqui pra
nós, uma revelação chistosa: ele adora dizer que já está velho e exagerar na demonstração dos efeitos do abatimento resultante da idade).
Pois bem. Recentemente, ouvindo velhas canções que foram marcantes em minha mocidade, uma delas despertou em minha memória um acontecimento inesquecível, envolvendo uma
garota que fingia ser cigana e trajava a indumentária típica das que se dizem
capaz de ver o futuro.
Nos anos cinquenta, a feira de Simão Dias tinha tudo que um jovem como
eu admirava: frutas regionais, doces, refrescos, bois de barro, pássaros,
rumbeiras, repentistas e camelôs que vendiam garrafadas e unguentos de óleo do
peixe elétrico.
Também por lá se apresentavam, em pequenas barracas circundadas por
lonas, fenômenos como o bezerro de duas cabeças e magias com jogos de espelhos
em que uma mulher se transformava em besta-fera (diziam que era uma moça que
bateu na mãe e se transformou no monstro do “Pracatu”, ou melhor, do Paracatu,
que é um povoado do nosso município).
Mas vamos deixar de divagação e passemos ao ponto chave de nossa lembrança.
Em uma determinada noite de natal, apareceu no largo da feira
uma apresentação mambembe em que um tocador de violão dedilhava a música
“Zíngara” enquanto uma garota – bonita, morena e usando os trajes de cigana – dançava o flamenco.
Depois da apresentação, a mocinha se dirigia às pessoas para ler o
futuro. Graciosa, com os olhos ligeiramente estrábicos, ela não deixava de
me olhar. E eu, talvez hipnotizado, não perdia um lance de sua beleza. Então
ela se aproximou e, usando o sotaque característico, iniciou sua conversa
chamando-me de gajão. Não deixei ela concluir a mensagem. Encantado, recitei
parte do poema "Zíngara", de Olegário Mariano:
“Vem, ó cigana bonita
Ver o meu destino
Que mistérios têm.
Tu com os olhos
De quem ver no acaso
O amor da gente
Põe em minhas mãos
O teu olhar ardente...”
Ela atendeu sorridente. Fomos até um discreto beco e amparado no portal
da loja de Seu Josino Barbosa, ao lado do prédio do antigo mercado, ela afagou minhas
mãos e eu as dela. Tentou ler meu futuro e, para isto, deu tudo o que podia e
lhe sobrava...
No esforço para me agradar, sussurrou carinhosamente a previsão de meu futuro, dizendo que seria muito rico, preenchido por valores materiais significativos, muito valorizados por ela, sem contudo me impressionarem.
No esforço para me agradar, sussurrou carinhosamente a previsão de meu futuro, dizendo que seria muito rico, preenchido por valores materiais significativos, muito valorizados por ela, sem contudo me impressionarem.
Mas – como era uma cigana de fantasia – seus presságios jamais se
concretizaram: nunca fui comerciante, nem farmacêutico ou médico. E o pior,
tenho uma dificuldade enorme em saber o nome de medicamentos, inclusive os seis
que atualmente uso para controlar meu rebelde coração.
Aquele devaneio não passou de uma noite de natal. Mas se tornou
indelével em minha memória. O carinho daquele momento está gravado como a
centelha de uma pérola que guardo no tesouro do meu acelerado coração. E
se torna redivivo quando ouço a canção “Zíngara”, da parceria de Olegário
Mariano e Joubert Carvalho, interpretada por Gastão Formenti, um sucesso musical nos velhos tempos em Simão Dias.
São idílicas recordações que repasso para os amigos e aproveito o ensejo
para postar o videoclipe que fiz com a artista baiana Rosa Luxemburgo, que em visita ao Lago Dourado se empolgou com nosso projeto e resolveu participar.
Aracaju, 21/10/2017
BETO DÉDA