quarta-feira, 6 de julho de 2016

Conversando com Guilé, a vovó do caroço.
Esta semana lembrei-me da conterrânea Guilhermina, também conhecida por Guilé, ao admirar o desempenho da atriz americana Ann Ransey na comédia “Throw Momma from the Train”. No referido filme, a feição da atriz apresenta uma boa semelhança com a Guilé. A diferença é que a amiga simãodiense era mais simpática. A personagem interpretada por Ransey exigia um desempenho que demonstrasse uma constante intolerância e raiva. Não era o caso de Guilé; sua agressividade não era contínua: aflorava quando era importunada pelas crianças da escola que ficava próxima à sua casa. 
 
 
Dona Guilé era uma senhora baixinha, ligeiramente cacunda, de rosto enrugado, voz rouca devido ao aumento da tireóide (bócio). Morava em uma travessa entre as ruas Santana e Estância, bem atrás do Grupo Escolar Fausto Cardoso, em Simão Dias. Ela parecia ser uma pessoa sofrida, mas muito disposta, do tipo que não leva desaforo pra casa. Não tolerava insultos e ficava pê da vida quando os meninos lhe chamavam de “vovó do caroço”, apelido derivado de sua idade e do aparente nódulo que tinha no pescoço. Quando ela ouvia o inditoso apelido, o pau troava, chovia palavrões e a mãe da garotada era quem sofria os impropérios da ofendida “vovó”.
Em minha memória, vejo a Guilé caminhando curvada, a passos lentos, escolhendo onde firmar os pequenos pés, calçados em alpercatas fabricadas por “chiquiteiros” conterrâneos. Sempre usava um vestido de chita e um cinto fino, que ela afivelava um pouco acima da cintura, próximo aos seios. 
De vez em quando ela aparecia na casa de meu sogro, na Rua de Santana. Eu gostava de prosear com D. Guilé e, logicamente, isto acontecia quando ela estava calma. Certa vez perguntei-lhe se já tivera algum namorado. Rindo, respondeu-me que sim; mas que o ajuntamento não durou muito tempo. As qualidades pouco recomendáveis do amante forçaram o desenlace. Teve que largá-lo. E com um gesto peculiar, torcendo o beiço para o lado esquerdo da boca, onde lhe faltavam alguns dentes, ela relacionou os defeitos do gajo. E o fez puxando pelos erres e com tal desembaraço que indicava ter decorado de tanto repetir:
  - O traste era bonitinho, mas também era comedor, bebedor, jogador, fumador, namorador, cantor, dançador e conversador. Tinha um papo que era uma esparrela: me fez cair no logro. Quando percebi, fechei a porta e mandei o desgraçado pra longe. Vai-te, pinima!
Certo dia eu estava tomando uma cerveja e ela chegou de mansinho pelo portão da casa de meu sogro, que dava para travessa onde ela morava. Pilheriando, perguntei se ela queria um copo da “loura” geladinha. Ao recusar a oferta, acrescentou uma informação inesperada. Disse-me, demonstrando seriedade, que só tomava um único e diário cálice do “Conhaque Alcatrão de São João da Barra”. E justificou que bebia exclusivamente como remédio, com intuito de revigorar os nervos, inibir a falta de apetite e expandir a alegria.
Ao perceber meu indisfarçado riso, aproximou-se e confidenciou:
 - Preste atenção, meu rapaz, eu bebo apenas um tiquinho do bom remédio que, por sinal, também é usado por pessoas de muita leitura e largo conhecimento. 
Em seguida, para justificar ainda mais o uso do conhaque, apresentou um exemplo surpreendente, ao afirmar em voz baixa, quase ao pé do meu ouvido:
- Dona Dinha – que é uma pessoa inteligente, sabe escrever na máquina e trabalha no ofício de escrituras – bebe diariamente uma dose dessa bebida para expandir sua alegria.
Neste ponto eu não controlei o riso. E ela não gostou, saiu com a cara de poucas amigas, sem responder de onde obtivera tal informação...
Pelo que sei da Dinha, ela sempre foi e continua sendo abstêmia e alegre. Naquela época, contei-lhe este fato e rimos à vontade.
Na verdade as lembranças de Guilé me alegram. Especialmente por ser ela uma das minhas personagens inesquecíveis de Simão Dias, e que, do mesmo modo, certamente permanece na memória da garotada do Grupo Escolar Fausto Cardoso dos anos sessenta/setenta.
Valeu a pena a lembrança que a atriz americana me despertou.
Aracaju, 06/07/2016.

BETO DÉDA