Conversando com Guilé, a vovó do caroço.

Dona Guilé era uma senhora baixinha,
ligeiramente cacunda, de rosto enrugado, voz rouca devido ao aumento da
tireóide (bócio). Morava em uma travessa entre as ruas Santana e Estância, bem
atrás do Grupo Escolar Fausto Cardoso, em Simão Dias. Ela parecia ser uma
pessoa sofrida, mas muito disposta, do tipo que não leva desaforo pra casa. Não
tolerava insultos e ficava pê da vida
quando os meninos lhe chamavam de “vovó do caroço”, apelido derivado de sua
idade e do aparente nódulo que tinha no pescoço. Quando ela ouvia o inditoso
apelido, o pau troava, chovia palavrões e a mãe da garotada era quem sofria os
impropérios da ofendida “vovó”.
Em minha memória, vejo a Guilé caminhando
curvada, a passos lentos, escolhendo onde firmar os pequenos pés, calçados em alpercatas
fabricadas por “chiquiteiros” conterrâneos. Sempre usava um vestido de chita e
um cinto fino, que ela afivelava um pouco acima da cintura, próximo aos seios.
De vez em quando ela aparecia na casa de
meu sogro, na Rua de Santana. Eu gostava de prosear com D. Guilé e, logicamente,
isto acontecia quando ela estava calma. Certa vez perguntei-lhe se já tivera
algum namorado. Rindo, respondeu-me que sim; mas que o ajuntamento não durou
muito tempo. As qualidades pouco recomendáveis do amante forçaram o desenlace.
Teve que largá-lo. E com um gesto peculiar, torcendo o beiço para o lado
esquerdo da boca, onde lhe faltavam alguns dentes, ela relacionou os defeitos do
gajo. E o fez puxando pelos erres e com tal desembaraço que indicava ter decorado
de tanto repetir:
- O traste era bonitinho, mas também era comedor,
bebedor, jogador, fumador, namorador, cantor, dançador e conversador. Tinha um
papo que era uma esparrela: me fez cair no logro. Quando percebi, fechei a
porta e mandei o desgraçado pra longe. Vai-te, pinima!
Certo dia eu estava tomando uma cerveja
e ela chegou de mansinho pelo portão da casa de meu sogro, que dava para travessa
onde ela morava. Pilheriando, perguntei se ela queria um copo da “loura” geladinha.
Ao recusar a oferta, acrescentou uma informação inesperada. Disse-me, demonstrando
seriedade, que só tomava um único e diário cálice do “Conhaque Alcatrão de São
João da Barra”. E justificou que bebia exclusivamente como remédio, com intuito
de revigorar os nervos, inibir a falta de apetite e expandir a alegria.
Ao perceber meu indisfarçado riso,
aproximou-se e confidenciou:
- Preste atenção, meu rapaz, eu bebo apenas um
tiquinho do bom remédio que, por sinal, também é usado por pessoas de muita leitura
e largo conhecimento.
Em seguida, para justificar ainda mais o
uso do conhaque, apresentou um exemplo surpreendente, ao afirmar em voz baixa,
quase ao pé do meu ouvido:
- Dona
Dinha – que é uma pessoa inteligente, sabe escrever na máquina e trabalha no
ofício de escrituras – bebe diariamente uma dose dessa bebida para expandir sua alegria.
Neste ponto eu não controlei o riso. E ela não gostou, saiu com a cara de poucas amigas,
sem responder de onde obtivera tal informação...
Pelo que sei da Dinha, ela sempre foi e
continua sendo abstêmia e alegre. Naquela época, contei-lhe este fato e rimos à
vontade.
Na verdade as lembranças de Guilé me alegram. Especialmente
por ser ela uma das minhas personagens inesquecíveis de Simão Dias, e que, do mesmo modo, certamente permanece na memória da garotada do Grupo Escolar Fausto
Cardoso dos anos sessenta/setenta.
Valeu a pena a lembrança que a atriz
americana me despertou.
Aracaju,
06/07/2016.
BETO DÉDA