As aventuras de um tropeiro capa-bode.
Nos anos setenta do século passado, conheci um
simãodiense arretado, que costumava me contar suas aventuras, num prosear
agradável. E eu não economizava tempo em ouvi-lo.
Quando o conheci já era um senhor idoso, ainda
forte, estatura média, cabelos e bigode brancos, um rosto rosado, quase
redondo, com marcas levemente deixadas por uma antiga varíola. Certamente quem
o conheceu sabe que ele esbanjava simpatia e muita idoneidade.
Já estava aposentado e marcara sua vida com muitos
afazeres, dentre os quais destacava sua lide como tropeiro, cuidando de
transportar mercadorias pelos sertões de Sergipe e Bahia, utilizando para isso seu comboio de vinte e tantos animais. A atividade lhe deu o apelido: Tropeiro. No tempo em que ele era moço, o
transporte de mercadorias era realizado no lombo de burras ou em carro de bois;
era assim porque naquela época não havia estradas no interior e poucos eram os
veículos motorizados. Sua especialidade era transportar para o sertão: açúcar, sal e aguardente; e, nas viagens de retorno, requeijão, carne do
sol e cereais.
Sempre gostei de puxar conversa com o velho
Tropeiro, de modo a conhecer suas aventuras e um pouco da história de nossa
região.
Encontrava-me com ele, às tardinhas, nos bancos da
praça de Matriz, perto do Bar Abrigo, local em que ele aguardava pacientemente
a hora da missa ou da novena. Era tempo suficiente para ele contar seus causos com detalhes.
Certo dia, em uma de nossas conversas, perguntei
sobre os perigos que passou em suas andanças pelo sertão. Contou-me que nunca
viajava sozinho, sempre era acompanhado por dois rapazes, que o ajudavam no
trato com os animais e também na segurança. Os dois ajudantes eram pessoas de
confiança, que sabiam lidar com adversidades, filhos de famílias da
terra. Um chamava-se Tonho Totó e o outro era apelidado de
Tiziu.
Não conheci o Tiziu, mas me lembro do Tonho Totó.
Encontrei-o várias vezes conversando com o velho Tropeiro na rua da feira. O Totó já tinha
ultrapassado a meia idade: era baixinho, franzino, com aparência do cantor
francês Charles Aznavour, usava um chapéu de palha surrado, sua calça era
de algodão branco, meia coronha (tipo salta riacho), e calçava um pé com um
"roló" (botina de couro cru) e no outro usava um chinelo
de sola, o que me fazia supor que ele tinha sido vítima de algum
acidente. Seu físico e forma de proceder não revelavam sua valentia
interior.
O velho Tropeiro confiava e admirava muito seus
ajudantes e não perdia oportunidade em divulgar a coragem e a fidelidade
daqueles moços. E contou-me um fato macabro que teve sua vida em perigo.
Repasso agora para os amigos.
Em uma época de chuvas, ele saiu de Simão Dias em
direção a Usina Pinheiros, na região do vale do Cotinguiba, para pegar uma carga de açúcar e aguardente. No meio
do caminho, o ajudante Tiziu foi acometido de uma febre conhecida como
"maleita", que o obrigou a ficar se recuperando em um rancho próximo
à cidade de Frei Paulo e por lá ficou durante um mês. Sem contar com aquele
ajudante, a tropa prosseguiu até o vale do Cotinguiba. Lá chegando e efetuada a
aquisição de mercadorias, o velho Tropeiro sentiu a necessidade de contratar um
novo auxiliar. Foi quando lhe apresentaram um sujeito grandalhão e forte, com o
estranho nome de Facinoroso, mas que, pela lei do menor esforço, era chamado
de Facci. A recomendação foi de alguém em uma das estalagens perto do
engenho Pinheiros. Contratado temporariamente o substituto de Tiziu, o
comboio retornou para Simão Dias.
O novo ajudante demonstrava saber lidar com a
tropa, mas deixava transparecer alguma dúvida sobre seu comportamento; detalhe
que foi discretamente sentido pelo experiente Tropeiro. Na viagem de volta
tiveram que fazer acampamento e pernoitar à beira do rio Vaza Barris, próximo a
cidade de Pinhão. Atravessar o rio à noite, com a burras carregadas, não era
recomendável. Acenderam um fogo e o velho foi se agasalhar e dormir sobre uma
pele de carneiro, deixando o Totó e Facci a conversarem.
Depois de muita conversa em que revelava sua astuciosa maldade e acreditando que Totó concordava, o Facci
tentou convencê-lo a formarem uma aliança contra o Tropeiro, apresentando um plano em que previa “imobilizar”
o idoso, roubar a mercadoria e os animais para vender no sertão da Bahia.
O Totó deu corda ao manhoso, objetivando conhecer melhor o que ele pretendia, de modo a se preparar para combatê-lo na hora certa.
O Facci programou o plano macabro para a meia-noite
e foram se deitar. Uma hora depois, o Totó sorrateiramente foi acordar o velho Tropeiro
e contou o que estava para acontecer. Então, combinaram efetuar uma defesa
eficaz e fingiram dormir.
À meia-noite, quando o Facci deu o sinal para
iniciar a tragédia e caminhou em direção ao local em que o velho fingia dormir, o
Totó barrou sua caminhada, deferindo-lhe uma forte cacetada, nocauteando o
manhoso grandalhão. Em seguida, o velho e seu auxiliar amararam o bandido, deram
uma pisa, forçando-o a contar seus malefícios.
Na manhã seguinte, atravessaram com segurança o Vaza-Barris e seguiram para Simão Dias.
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Tropeiro atravessando o rio com a tropa(Rabisco em desenho da rede social) |
O velho Tropeiro esclareceu que - dias depois, ao conversar com sua comadre Zefa Andarilha - soube que apareceu na cidade de Pinhão um sujeito maltrapilho, com hematomas e pinicado de formiga, em busca de transporte para a localidade Serra Negra, na Bahia. O boato é que ele fora se abrigar nas terras do Coronel João Maria, no atual município baiano de Pedro Alexandre.
E concluía sua narrativa informando que, em terras sergipanas, nunca mais se ouviu falar no tal de Facinoroso, também conhecido como Facci.
Aracaju, 06/03/2024
Beto Déda