quarta-feira, 23 de novembro de 2022

 

O “Tanque Novo” de Simão Dias.

 

Para atender ao pedido do meu caro primo e poeta Ézio Déda, vasculhei meus implacáveis arquivos em procura de uma foto do antigo reservatório de água de Simão Dias, denominado “Tanque Novo”. Tirei a poeira de várias caixas e pastas, e constatei que até agora meus esforços não tiveram êxito: não encontrei a foto solicitada.

Ciente de que não poderia falhar ao pedido do admirável poeta, procurei prescrutar os escaninhos de minha memória, onde guardo um maravilhoso acervo do mundo que trilhei em minha infância e adolescência.

E lá estava guardada a imagem do “Tanque Novo”, de águas remansosas e barrentas, circundado por uma elevação e uma pequena muralha de pedra. À frente existia uma entrada guarnecida por um mata-burro, para evitar a passagem de animais.


Na época não existia água encanada na cidade e os reservatórios (porrões) das residências eram abastecidos com água do “Tanque Novo”, por aguadeiros que guiavam comboios de jegues, transportando água em barris ou grandes latas de querosene (marca “jacaré”).  

 Durante o dia, constatava-se na frente do tanque uma algazarra sem limites, em que o barulho das latas e o vozerio dos aguadeiros tumultuava qualquer conversa na proximidade daquele ambiente. Logo após o mata-burros estava o relevo que servia de represa para as águas, cuja subida era facilitada por degraus cobertos com lascas de pedras cinzentas. No alto da barragem foi construída uma capela, cuja parte lateral, às tardes, sombreava pessoas que ali se refrescavam, em cochilos ou jogando dama e gamão.

Do patamar ao nível d’água também havia uma escadaria cobertas de pedras. Os degraus eram compridos de modo a permitir que, subindo ou descendo, muitos aguadeiros enchessem e transportassem suas vasilhas ao mesmo tempo

O "Tanque Novo" no traço e imaginário de Beto Déda.


Lembro-me, agora, de um senhor forte, que sempre estava ao lado da capelinha, e que se portava como vigia do tanque: era alto, forte, musculoso e usava um boné para encobrir os poucos cabelos, sem, entretanto, ser careca. Gostava de disputar quebra-de-braço e era considerado o campeão local da modalidade. Certo dia apareceu por lá um senhor baixinho, que embora de aparência fraca, aparentava músculos rígidos, cujo apelido, senão me engano, era “Bacalhauzinho”. Parecia ser conhecido e depois de muita conversa com o vigia, resolveram disputar um quebra-de-braço. Iniciaram a disputa e, para minha surpresa, o vencedor foi o baixinho.  Não houve ressentimento e tudo terminou em risadas.

No seu livro “Simão Dias: fragmentos de sua história”, Carvalho Déda informa que o “Tanque Novo” foi construído pelo Capitão Domingos José de Carvalho, “nos primeiros dias da formação da cidade”. Sua denominação foi assim declarada porque já existia na cidade um tanque antigo, no final da Rua Santa Cruz, que era conhecido como “Tanque Velho”. Segundo tradição oral, o antigo tanque foi escavado por determinação do senhor que construiu a primeira Capela.

Na seca de 1956/57, o “Tanque Novo” foi reformado, realizando-se uma limpeza total. A meninada admirava o trabalho dos homens transportando o barro em banguês de cipó, e vibrávamos ao ver quando capturavam no meio da lama os muçuns – enguias pretas – parecidas com gordas cobras, que tinham o corpo coberto por uma gosma deslizante e que escapavam com facilidade das mãos dos trabalhadores.

Naquele tempo, pegávamos o barro grudento (argila) das margens do tanque para modelar máscaras de carnaval e fazer balas para usar nos badogues (conhecidos em outras regiões como: estilingues e baleadeiras).

O "Tanque Novo" visto da torre da Igreja (Foto Dones)


A origem da capela tem como motivo um crime passional, conforme texto de Marius de Andrade, publicado no jornal “A Semana”, edição de 10/03/1956.  Resumo, a seguir, o triste fato que deu origem à capelinha do tanque.

No ano de 1908, um mancebo apaixonou-se por uma bonita morena, “de olhos pretos e redondos, cabelos compridos, corpo delgado e cadeiras bem torneadas”. Em uma manhã, o rapaz foi à casa onde morava a garota e tentou persuadi-la, dizendo que querida casar com ela. Diante da firme negativa da moça, o louco apaixonado, dominado por um ímpeto de cólera, bateu e esfaqueou a indefesa donzela, matando-a. Naquele instante chegava em casa a mãe, que tenta socorrer a filha agonizante e recebeu também uma mortal peixeirada do tresloucado assassino. Mãe e filha morrem abraçadas. O homicida foge, se embrenha nas matas e é procurado pela polícia. Passados alguns dias escondido, arrependido e triste, o criminoso resolve se entregar.  Na prisão foi surrado e teve como obrigação transportar água do “Tanque Novo” para abastecer os reservatórios da cadeia pública. Em determinada tarde, quando descia os degraus do tanque, recebeu um tiro no peito e tombou sem vida, misturando seu sangue com a água barrenta do “Tanque Novo”.

Naquele mesmo ano foi construída a Capelinha da Santa Cruz para registrar a triste história do destino dos três infelizes; e a edificação, por muitos anos, deitou sombra agradável para os vigias e visitantes do tanque.

 Para os que os que ali frequentavam, o lugar era mal-assombrado: à noite os que ousavam pescar naquele lugar eram escorraçados por almas penadas.

Essas são imagens que tenho do grande “Tanque Novo” que, apesar da água barrenta, acudiu nossa gente nos velhos tempos. Sem esquecer que um pouco de pedra-ume tornava a água dos porrões límpida e inodora.

 

Aracaju, 21/11/2022

BETO DÉDA