Na
tipografia, merendando pão quente, café forte e doce de leite.
Recentemente
meu sobrinho João Déda, que é um excelente gourmet,
iniciou no facebook postagens sobre
como degustar as coisas boas da vida, especialmente de pratos com iguarias
deliciosas. Lendo seus escritos e mesmo percebendo que cuidam de cardápios
refinados, lembrei-me dos velhos tempos quando os lanches, embora simples,
também eram saborosos e compartilhados alegremente com inesquecíveis
amigos. Para que não se percam no tempo, repasso aqui essas recordações para meus queridos netos e também para aqueles que viveram aquela época e gostam de relembrar fatos de nossa terra.
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O lampião 'Petromax' |
Meu
primo Valter Oliveira era um tipógrafo de mão-cheia. Durante um período ele foi
o chefe da oficina d’A Semana, e cuidava com esmero para que o jornal
circulasse certinho aos sábados pela manhã. Dessa forma, a impressão do jornal
estava sempre concluída nas tardes de sextas-feiras. Acontecia, porém, em algumas
ocasiões, que a composição ou a impressão atrasava e tínhamos que fazer serão, passando das vinte duas
horas, quando o motor da usina parava de gerar emergia para a cidade. Aí,
então, os trabalhos continuavam sob a luz de potentes lampiões que funcionavam
a querosene, com camisa de seda incandescente, chamados “petromax”. Era em noites assim que se comentava
sobre futebol, cinema e se merendava o pão quente da Padaria de Seu Oscar
Rocha, que ficava ali próximo. Àquela hora da noite, é claro, a loja da padaria
já estava fechada, mas os padeiros nos atendiam por uma porta cortada ao meio,
que ficava ao lado da Rua Mulungu, defronte ao prédio que pertencia ao Seu
Dorinha, onde funcionou o Banco do Brasil.
Eu era o encarregado de comprar os pães. A
recomendação de Valter é que deveriam ser bem amanteigados e nisso os padeiros
não faziam economia, usando grande espátula, de modo que manteiga escorria
pelas mãos. Em uma lata, com água e pó de
café, sobre um fogo feito com papel picado, retirado debaixo da mesa da
guilhotina, fazíamos em poucos minutos um café forte (não se coava o pó) de
melhor qualidade, que degustávamos com o saboroso pão quente amanteigado. Uma
delícia que até hoje, ao lembrar, me deixa com água na boca.
Esses serões continuaram acontecendo depois, sempre
que ocorria atraso na composição do jornal, quando o chefe da tipografia era
Luiz Santa Bárbara.
No início das tardes, meu primo Armando
passava pela tipografia com um tabuleiro de copos de doce de leite e de banana
feitos por tia Pequena. Eram vendidos tanto lá como na tenda da fábrica de calçados
Sidon, que ficava próximo e pertencia
ao meu tio Paulo, onde também trabalhava o tio João Déda. O doce era
transportando em pequenos copos de vidro, coberto com papel manteiga, para
proteger das moscas e dos dedos dos gulosos.
Com a colherinha detonávamos o papel, fazendo um ruído característico, e
nos deliciávamos com a guloseima.
Certa tarde, Luiz Santa Bárbara e um dos
auxiliares, o Luiz Carlos, filho de Seu Isidro, iniciaram uma discussão sobre
quem mais gostava do doce de leite. Então o Luiz Carlos afirmou que seria capaz
de comer mais de dez copos de doce, o que foi contestado pelo chefe. Resolveram
então pagar para ver. Acertam, por fim, que o Santa Bárbara pagaria todo o doce,
caso Luiz Carlos comesse mais de dez. Sacramentada a aposta, Luiz Carlos
começou a saborear o doce. Quando estava no sexto copo, afirmou que teria que
tomar um pouco d’água. Discutiram esse ponto e no fim foi acordado que ele
teria que tomar uma cuia cheia (metade de uma lata de queijo do reino, vasilha
que era usada para beber água). Depois de saciar a sede, o colega Luiz Carlos
passou a comer o doce bem devagar... e não passou do nono copo. Engulhou,
começou a vomitar e desistiu do confronto, afirmando desanimado:
-
Vôte! Que enjoo arretado. Nunca mais vou comer doce de leite...
Perdida a aposta, com o semblante triste,
pálido e suando frio, ele foi para casa cedo, curtindo uma dor de barriga sem
limites.
Ainda durante as tardes, depois da
impressão de uma página do jornal – era impressa uma página por vez, no
decorrer da semana – jogávamos basquetebol em uma quadra improvisada no
apertado quintal da tipografia. Nunca passavam de seis jogadores; normalmente
éramos quatro. Jogo bem divertido, com regras ali mesmo acertadas, só parávamos
quando todos estavam bastante cansados e suados. Depois de um ligeiro descanso,
pensávamos no lanche. Aí também não deixava de ter o gostoso pão da Padaria de
Seu Oscar, mas o acompanhamento não era a manteiga nem o forte café.
Comprávamos uma lata de quitute e duas garrafas de refrigerante Caçulinha no Bar de Pedro Mendes, que
ficava vizinho à tipografia, era parede-meia, como se dizia na época. O lanche
era dividido salomonicamente e consumido com avidez.
Por fim, para ser fiel a narração deste fato,
não nego que se seguiam arrotos escancarados que, quando ouvido por um adulto, eram
devidamente esculachados...
E os dias se passavam, o jornal era editado,
brincávamos bastante, merendávamos e, como diz o colega e amigo Zé Raimundo
Araújo:
“Éramos
felizes e, diferente do jargão poético, sabíamos que éramos!”
Aracaju, 25/03/2013
Beto Déda
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