quarta-feira, 19 de setembro de 2018



A Praça de São João, Seu Nia e a festa dos Lambe-sujos e Caboclinhos.

Em minha infância a Praça de São João, em Simão Dias, foi meu mundo de brincadeiras, de fantasias e de encantos. Naquele local eu vi e participei de inesquecíveis acontecimentos, a maioria deles pontilhados pela aventura e alegria comum aos garotos da época. Diversão não faltava.

Nesta semana, depois do prazer da leitura de um bom livro, minha memória foi despertada para fatos que ocorreram na saudosa Praça ou Parque São João, no início dos anos 50.

O ponto que despertou minha memória para a praça foi um rapaz podando uma árvore e que caçoou de minhas advertências para evitar que cortasse o galho em que estava sentado.

Narrei para o improvisado lenhador o caso de um conterrâneo que, ao podar uma árvore da Praça São João, caiu junto com o galho (se descuidou e se sentou na extremidade que estava sendo cortada!).  Fraturou o braço e passou a ser chamado de “Hosana das Alturas”. E a queda foi motivo de gozação por muito tempo entre os moradores do local.

Na mente de um septuagenário de boa memória, uma lembrança leva a outra. E surgiram outras recordações que repasso aqui.

Lembrei-me também da aventura do amigo Hélio de Seu Otávio que, com medo de um boi cara preta, subiu em um pé de tamarindo e depois não sabia descer. Passou a chorar e gritar pedindo socorro. Seus gritos foram ouvidos pela saudosa Teté (Tefinha Alves) que chamou um senhor forte, conhecido como Seu Nia, e com ajuda dele socorreram o garoto.

Teté era uma querida amiga de minha família e morava na Rua do Coité, nas proximidades da Praça de São João.

Seu Nia era um negro simpático e muito comunicativo que trabalhava como magarefe e salgava carne do sol no matadouro municipal. Ele era de Laranjeiras e conhecia muito bem a tradição das festas daquele município sergipano. Falava muito dos folguedos de sua terra e, diante do interesse e curiosidade dos que lhe escutavam, organizou uma festa dos “Lambe-sujos e Caboclinhos” em nossa cidade. Uma verdadeira apresentação teatral a céu aberto.

O palco dos festejos foi a Praça de São João. Tudo planejado e ensaiado com a devida antecedência. Na praça, no local onde jogávamos bola, foram erguidas as tendas ou ocas com varas de bambus trazidas da Fazenda “Chora Menino” do Desembargador Gervásio Prata. 

Rapazes e meninos da redondeza foram chamados para representarem os grupos dos negros e dos índios. Os representantes dos índios eram pintados com uma tinta parecida com “roxo e terra”, ornamentados com penas variadas e armados com arco e flecha. Os que representavam os Lambe-sujos eram pintados com uma mistura de melaço e uma tinta preta, que deixava a pele brilhante, e portavam uma foice de madeira.  O cacique dos índios era Pedro, filho de Dona Balbina, e o chefe dos negros era Seu Nia.

Participei dos ensaios e ainda hoje me lembro do refrão dos cânticos de ambos os lados. Os Lambe-sujos gritavam: “Samba negro, que branco não vem cá. E se vier pau há de levar!”. Enquanto o refrão dos caboclinhos era: “Prender negro? Rei dos Caboclos!”.

Fiz todos os preparativos para sair como um caboclinho. Além de participar dos ensaios, juntei as mais bonitas penas de galinhas, patos e pavões para fazer o cocar e as vestes de índio. 
O Caboclinho Beto

Mas não deu certo. Eu era muito magro, sofria da vesícula e minha mãe não aprovou minha pretensão. Justificou a desaprovação alegando que a tinta vermelha na minha pele poderia  provocar uma reação em meu frágil organismo. Fui forçado a entender sua preocupação e tive que repassar para o amigo Miraldo (filho de Zefinha de Zeca de Quincas) as penas escolhidas e bonitas que tinha colecionado. E o Miraldo não me poupou da inveja ao vê-lo com trajes de índio.

A festa ocorreu em uma tarde de domingo.  Lembro-me que no portão de minha casa foram colocadas várias cadeiras para meus pais e meus irmãos se sentarem e assistirem o desenrolar da batalha.

Era uma apresentação formidável, narrando a batalha que teve como origem o rapto de uma índia pelos negros. No centro da Praça, começava o embate entre o Cacique (Pedro de Dona Balbina) e o Chefe dos Negros (Seu Nia). O índio era o vencedor, libertava a princesa e aprisionava os negros. Então os caboclinhos saíam guiando os lambe-sujos para pedir aos assistentes uma moeda para alforria.

A festa dos Lambe-sujos não se tornou tradição em nossa terra, mas o espetáculo a céu aberto programado por Seu Nia se tornou um fato inesquecível para muitos rapazes e meninos que viveram naquela época nos arredores da Praça de São João.

Tais lembranças enriquecem o cabedal do meu viver e relembrá-las equivale a um prazer imenso; renovam minhas forças. Não é à toa que os meus próximos percebem o brilho nos meus olhos quando me dedico a recordar os bons tempos.

Aracaju, 19/09/2018.
BETO DÉDA


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