O possesso
Há muito tempo, quando
eu era garoto, ouvi de um querido tio o curioso caso de um sujeito que foi considerado possuído pelo demônio. Tentarei transcrevê-lo, aqui, com esforço para transmitir mais ou menos o que
ouvi do bondoso irmão de minha mãe.
O fato aconteceu no mês
de julho – que os simãodienses chamam de mês de Santana – no início dos anos cinquenta,
envolvendo um senhor de quarenta e poucos anos de idade. Ele tinha pele alva, pescoço comprido, um grande gogó e costas um pouco envergadas. Era conhecido como Janu da Várzea.
Naquele dia ele acordara mais cedo que do
costume. Acendeu o fogo, tomou um ligeiro café e aguardou que a densa neblina
dissipasse, deixando lugar para o sol, que nascia meio tímido, derramar seus primeiros
raios luminosos sobre as matas da Várzea da Isca. Selou o cavalo e galopou em
direção à cidade.
Naquela semana Simão
Dias estava em festa. Acontecia o novenário em homenagem a Nossa Senhora
Santana, padroeira da cidade. As casas estavam repletas de visitantes. Raras as
famílias que não recebiam parentes e amigos em seus hospitaleiros lares. Na Rua
do Coité, a residência de D. Tefinha não era exceção. Ela recebia a costumeira
visita dos donos da casa, alugada sob a condição de abrigar a família do
proprietário nas festas tradicionais da cidade: Natal, Ano Novo, Semana Santa,
festa de Santana e no dia de eleição.
Janu
era sobrinho do dono da casa e também ali se hospedava. Ele chegou cedo,
amarrou seu cavalo no quintal e foi cuidar de alguns negócios pendentes, como
também comprar o que lhe era indispensável em seu sítio: sal, querosene e café.
Para almoço daquele
dia, D. Tefinha tinha temperado, de véspera, em uma grande frigideira de barro,
apetitosos lombos. Lá pelas onze e meia, depois dos trabalhos de arrumação da
casa, é que o fogo de lenha foi reativado para o preparo do almoço, inclusive
os saborosos lombos. O cheiro dos petiscos invadia a casa, estimulando o
apetite de todo pessoal, especialmente de Janu,
que desde cedinho tomara apenas um rápido café.
Quando o relógio da
Matriz disparou o toque das doze badaladas, anunciando o meio-dia, soou o
foguetório na Praça Barão de Santas Rosa e a banda Lira Santana, tocando seus
tradicionais dobrados, desfilou pela Rua do Coité. O povo saía à rua para
apreciar a fuzarca. Na casa de D. Tefinha não era diferente, todos estavam à
porta, alegres aplaudindo a banda, menos Janu
que fora até o quintal cuidar do cavalo que desamarrara.
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(Gravura obtida no http://gyperoladalua.blogspot.com.br)
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A ausência de Janu foi notada por Alice, uma solteirona que morava na vizinhança e que era vidrada no
coroa. Ela foi procurá-lo no interior da casa. Assim que adentrou ao corredor,
deparou-se com o Janu que, ao senti
sua presença, saiu apavorado da cozinha em direção à sala, onde começou a dar
tremendos pulos, com as faces contorcidas, os olhos querendo saltar das órbitas
e a expressão de terror. Apavorada com aquele quadro dantesco, Alice gritou pedindo socorro.
Todos invadiram a sala
e, estupefatos diante do que viam, exclamaram quase uníssonos: - Acuda, o homem está possuído pelo demônio! Em
meio a gritaria infernal, D. Tefinha iniciou imediatamente uma ladainha de
exorcismo:
-
Ave Sant’Ana, cheia de graça, rogai ao Bom Jesus para ajudar ao pobre Janu que
está com o encosto do espírito da mal.
Enquanto todos rezavam,
o Janu rolava pelo chão da sala,
grunhindo, com as mãos no pescoço, as unhas dilacerando os músculos, já ficando
roxo. Justo naquele momento entra na casa o Bão, um experiente e idoso negro
que morava na Rua do Curral. Percebendo a cena, sem retardar, ele bradou,
pedindo ajuda ao tio de Janu, Seu Chico Pereira:
- Chega Chico, deixa de rezar e vamos levantar o homem que ele não está
com nenhum encosto de cabouco, me ajuda aqui.
Venha!
Com muito esforço, os dois levantaram o quase desvalido “possesso”. O Bão deu um forte tapa nas costas do Janu que, escancarando a boca, vomitou um baita pedaço de lombo. O espanto foi geral. Seguido de um ligeiro silêncio, quebrado pela voz de tenor do irreverente Bão:
-
Taí o demo que ele engoliu. Um pedação de lombo. Tava com fome, meu fio?
Superado o susto, com
um riso amarelo e desconfiado, Janu esclareceu
tudo. Sentindo o cheiro apetitoso do lombo, ele não se conteve e, aproveitando
a saída do pessoal para apreciar a banda, foi até a cozinha, destampou o aribé
e pegou um pedaço de lombo. Quando ouviu os passos de Alice, tentou se livrar da carne e gulosamente engoliu o pedaço de
uma só vez. Foi a conta. Engasgou, ficou sem ar, apavorou-se e quase morreu. E
o gostoso lombo transformou-lhe em um “possesso”, apesar de ser um fervoroso
devoto de Nossa Senhora Santana.
Naquela época muitos
acreditaram que foi a santa padroeira de Simão Dias quem guiou o experiente
negro Bão até a casa de D. Tefinha. Mas havia controvérsia...
Aracaju,
15/01/2013
Beto
Déda
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