terça-feira, 16 de junho de 2015


A mão esquerda, o corrimboque e o cafezinho.
Em outros escritos meus, contei que eu sou um admirador incondicional de meus saudosos tios. Encantava-me com suas histórias e ficava feliz ao perceber a paciência que eles tinham em me ouvir e me orientar com exemplos simples e maravilhosos.
Certa vez eu conversava com meu tio Paulo a respeito do hábito de fumar e lembrei-lhe que tio João Déda era o único da família que gostava de cheirar rapé, conhecido como torrado, que era o fumo moído e comercializado por Maria Pixilim, que morava na Rua da Palha, atrás do Açougue, lá em Simão Dias.
Tio João carregava o rapé em um corrimboque, conhecido também como tabaqueiro, feito da extremidade da ponta de boi ou de bode, com tampa de madeira e um laço de couro para facilitar a abertura. Ele tinha todo cuidado com o torrado e não permitia que ninguém o retirasse da caixinha de forma incorreta. Se uma pessoa pedia uma pitada ele oferecia o rapé de modo que o pedinte sempre usasse os dedos da mão esquerda. Se a pessoa insistisse com a direita ele passava o corrimboque para o lado esquerdo, insinuando ao sujeito que a pitada deveria ser retirada com os dedos da mão esquerda.

Perguntei ao tio João a razão daquele cuidado e ele me explicava que os dedos da mão direita traziam impurezas, porque eram usados pelo homem para pegar coisas íntimas ao satisfazer suas necessidades físicas: fazer xixi, por exemplo. Para ele os dedos da mão esquerda tinham menor sujeira.
Cocei a cabeça, pensei um pouco e indaguei:
 - Meu tio... e se o pedinte for canhoto?
- Ora, respondeu ele, os que me pedem a pitada são amigos e conhecidos. Eu sei quem é canhoto e, neste caso, o corrimboque vai para os dedos da mão direita. 
Assim que contei esse fato, o tio Paulo, com seu jeito simpático, disse-me que conhecia esse hábito de tio João e contou-me o causo que repasso pra vocês.




Tio Paulo era o proprietário de casa de calçados “Esquina da Economia”, situada entre as ruas João Pessoa e São Cristóvão.  Sempre que tinha uma folga ele ia até a Padaria Nossa Senhora do Socorro, que ficava próximo, tomar um cafezinho e fumar um cigarro, que sempre ficava preso entre seus lábios. A padaria era movimentadíssima e servia muito café pequeno. Para se resguardar, meu tio sempre pegava a xícara com a mão esquerda. Dizia ele que poucos usavam a mão esquerda, então o lado direito da xícara era menos impuro.
Contava-me, então, o bom tio que certo dia ele estava todo concho tomando seu cafezinho quando, de repente, alguém tocou em seu ombro e falou:

- Oi, ‘Palo’, você é como eu, toma o cafezinho com a mão esquerda. Você também é canhoto?
Meu tio virou-se e constatou que a pergunta fora feita por um tipo popular da cidade, conhecido por TÔ TE AJEITADO, que usava paletó, camisa florida e gravata espalhafatosa; vendia bilhetes de loteria e tinha os beiços feridentos, parecendo que estavam acometidos de aftosa.

Tio Paulo olhou bem para os lábios feridos de TÔ TE AJEITANDO e, sem desfaçar o susto, soltou incontinenti a xícara no balcão. Daquele dia em diante deixou de tomar cafezinho com a mão esquerda...

Aracaju, 27/04/2015.

Beto Déda

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