De como me lembrei dos
comerciantes de jabá, leite in natura, colchas e ovos.
Recentemente fui
almoçar com meu filho Bruno em um restaurante, lá pela zona de expansão de
Aracaju, próximo ao Mosqueiro. Lamentavelmente não conseguimos matar a fone,
porque o que nos foi servido estava ruim. Chamei o garçom e reclamei. Disse-lhe
que a carne estava MOÍDA. Ele tentou justificar e perguntou:
- O filé não foi esmagado. Moída como?
Expliquei-lhe
que a carne estava com gosto ruim, fedida, imprestável à alimentação.
Resolvido o
problema, comentei com meu filho que nos velhos tempos, em Simão Dias, a
expressão “carne moída” significava que o produto estava começando a apodrecer.
Lembrei-me, então, de um caso em que tia
Esterzinha usou com veemência essa expressão. Conto para vocês esse fato e,
como uma lembrança leva a outra, também narro aqui outros causos de comerciantes
de minha terra.
1.
Comprando jabá moída
Certa manhã tia
Esterzinha me mandou comprar jabá no armazém de Seu Dominguinhos, um conhecido
comerciante da cidade, proprietário de um estabelecimento de secos e molhados que
ficava perto do Mercado da Carne.
Em minha memória
de garoto, Seu Dominguinhos era um homem idoso, alto, branco, de nariz
avantajado e voz rouca, sempre usando um boné parecido com o do humorista
Chaves. Reclamava de tudo, sem deixar de ser engraçado.
Cheguei ao armazém
e fui atendido pelo próprio comerciante. Pesada a carne, voltei rápido e a
entreguei a tia Esterzinha. Ela abriu o pacote, olhou, cheirou a jabá, franziu
a testa, torceu o nariz em sinal de desagrado e, olhando pra mim, exclamou:
- Esta carne está moída! Quem vendeu?
Diante de minha
resposta, protestou e mandou-me voltar imediatamente ao armazém e procurasse
dona Noquinha, a esposa do comerciante, para trocar a mercadoria. E repetia: - Está moída!
Voltei ao
armazém e falei diretamente com dona Noquinha, dizendo que a jabá estava
fedida. Ela pesou outro pedaço de charque na forma recomendada por minha tia e lançou
um olhar de censura ao marido.
Então, com sua
voz rouca, ele explicou sem disfarçar o sorriso e acrescentar seu refrão
preferido:
- Não notei que a carne estava ou não moída. No
mais, é bom lembrar que negócio é negócio, amizades à parte.
...
2.
Bebendo leite in
natura com espuma
Era costume de
algumas pessoas de Simão Dias acordar cedo e tomar leite in natura, quentinho, tirado na hora nos currais próximo à cidade.
Seu Dominguinhos,
além de cuidar do armazém, era criador de vacas holandesas que ele mesmo
ordenhava e vendia o leite in natura.
O curral ficava no final da Rua do Mulungu, quase beirando a rua conhecida
popularmente como a Ponta da Asa. Depois de ordenhadas, as vacas pastavam no
outro lado da cidade. E todas as tardes, o rebanho era guiado para o estábulo,
passando pela Rua dos Ribeiros, sujando as calçadas e atrapalhando nossos jogos
com bola de meia.
Pois bem. Ele próprio
ordenhava as vacas e, no momento em que enchia os copos da freguesia, era bem
cauteloso, ou seja, segurava o copo longe das tetas da vaca. Dizia que era
questão de higiene. Usando essa tática, o comerciante provocava bastante espuma,
de sorte que, ao final, o freguês ficava com o copo com metade de leite e
metade de espuma.
Mas como para
todo sabido tem sabido e meio. O pessoal descobriu que passando suavemente um
pouco de manteiga no copo, o leite não espumava, mesmo ficando longe das tetas
da vaca. E com isso livravam-se da esperteza da espuma. Só que não
durou muito. O comerciante desconfiou da tática dos fregueses e, com sua voz
rouca, se negava a atender aos que amanteigavam o copo. Só vendia depois que tiravam a manteiga,
justificando que era questão de “asseio”.
Tia Nice era uma
das freguesas do leite das vacas de seu Dominguinhos. E eu ia com ela.
Um dia resolvi
tomar leite com chocolate. Quando Seu Dominguinhos segurou meu copo e viu o que
estava dentro, olhou-me de soslaio, dizendo que não permitia que se colocasse
qualquer coisa dentro da vasilha e negou-se a me atender. Fiquei aflito diante
daquela observação e somente me acalmei quando tia Nice veio em minha defesa. Seu
incisivo protesto fez o comerciante retroceder, atendendo-me, sem, contudo,
deixar de me advertir:
- Garoto,
na próxima vez traga seu chocolatinho em outra vasilha e só o coloque no copo
depois que eu pôr o leite. Entendeu?
E complementava:
- Negócio é negócio, meninos e amizades à
parte... ...
3.
O festival "Idílio de Verão" e a 'penosa' das colchas e dos
ovos
![]() |
Antigo prédio da Prefeitura |
No ano de 1954,
tia Francisquinha foi uma das organizadoras do festival de arte denominado
“Idílio de Verão”, realizado em benefício da Sociedade de Assistência aos
Lázaros de Simão Dias, da qual ela era presidente. O festival foi realizado no prédio
da antiga Prefeitura. Eu era garoto
naquela época, mas lembro-me que, muito compenetrado, eu ajudei, como garçom-mirim,
em uma barraca que servia doces, salgadinhos e refrigerantes.
![]() |
A Semana noticia o festival "Idílio de Verão" |
Na festa houve
apresentação de artistas amadores da localidade. Um dos apresentadores foi o
tio Paulo. Ele empolgou a todos com seu jeito admirável de contar “histórias
penosas”.
Nesse dia,
dentre muitas “penosas”, ele narrou os negócios realizados com dois conhecidos
comerciantes da cidade e que, parece-me, estavam presentes àquela festa: o seu
Dominguinhos, do armazém de secos e molhados, e Dona Zu, que tinha uma loja de
tecidos.
Dizia, então, meu
tio, que Seu Dominguinhos foi à casa de tecidos de Dona Zu, comprar umas
colchas. Lá chegando pechinchou, pechinchou e no final conseguiu o preço que
queria. Satisfeito com o negócio, ele fitou a dona da loja e lembrou que na
semana anterior ela estivera no seu armazém e também pechinchara muito,
conseguindo comprar ovos pelo menor preço. E risonho complementava:
- Naquele dia você me pegou nos ovos, mas hoje eu
lhe peguei nas colchas...
Antes que as
cortinas fechassem, meu tio interrompia os aplausos e, com seu modo engraçado,
esclarecia:
- Não confundam colchas que se escreve com e CH, com
coxas, com X, e nem ovos com... com... ora BOLAS... com outros ovos!
E
os risos e as palmas duplicaram-se...
Aracaju, 10/fev/2015
Beto Déda
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