sábado, 6 de outubro de 2012


Uma aventura no Povoado Ilhota

 Neste fim de semana, ouvindo minha secretária Rosa falando sobre a surra que dera em seu filho, ocorreu-me a lembrança da primeira e única sova que levei, merecidamente, do meu saudoso pai. Aconteceu no início dos anos 50, quando eu contava com mais ou menos 11 anos de idade. E tudo ocorreu por causa de um “presente” que nos foi oferecido, com a melhor das intenções, por D. Zefinha, que morava na casa de tia Nice. Vou contar como aconteceu.

Naquela época, D. Zefinha era professora de uma escola rural no povoado Ilhota, no município de Simão Dias. Certo dia, ela e tia Nice preparavam-se para ida àquele povoado, onde iriam arrumar o prédio onde funcionava a escola. Eu e meu primo Wellington (dois anos mais velho que eu) estávamos brincando por ali e presenciamos as conversas sobre os preparativos para o passeio. Percebendo nosso interesse, elas prometeram que nos levariam. O certo é que conversaram com mamãe e tia Vina e, no dia seguinte, fomos ao passeio.  

Na Ilhota, o fato marcante foi a admiração que tivemos ao ver uma jumenta e seu filhote pastando ao lado do prédio escolar. O jeguinho era uma beleza de deixar qualquer garoto admirado, enquanto a mãe-jumenta mancava e tinha uma bicheira na coxa esquerda, defeitos que nos causavam dó, mas que acreditávamos passíveis de recuperação. Compartilhando de minha curiosidade, Wellington não se conteve e foi indagar quem era o dono daqueles animais. D. Zefinha disse que não tinham dono, apareceram ali na escola há algum tempo e, sorrindo, fez uma oferta sem maiores pretensões: - “Se vocês quiserem, o filhote é de Beto, que é o mais novo, e a jega é sua, porque você é mais velho”.  Lembro-me que pulamos de alegria. Não sabíamos, nem tampouco D. Zefinha, que aquela oferta em tom de brincadeira traria resultados surpreendentes e doloridos para nossas mãos.

Voltamos para cidade no início da tarde daquele mesmo dia. À noite fui à casa de vovó Olívia, na Rua dos Ribeiros, e lá estavam meu irmão Carlos e os primos Alfeu e Wellington. Assim que fui me aproximando, Alfeu, o mais velho da turma, foi dizendo: - “É verdade o que Wellington tá dizendo? Vocês ganharam uma jumenta e o filhote?”. Confirmada a indagação, Alfeu tratou do plano de ir buscar os animais. Planejamos tudo. Fomos todos à casa de Gervásio, o aguadeiro, irmão de Arlinda, e alugamos um jegue, para servir de montaria e facilitar a vinda dos outros, afirmava Alfeu.


Os aventureiros: Carlos, Alfeu, Beto e Wellington
No sábado cedinho, sem avisar a ninguém, partimos para Ilhota. Alfeu, no comando, Carlos com subcomandante, Wellington e eu como comandados. E rumamos à aventura. Como era o mais novo tinha direito a ir sempre montado na garupa do jegue alugado, com os demais sempre se reversando na frente. O Alfeu, mais sabido, passava mais tempo montado e só descia quando as reclamações dos companheiros tomavam ares de motim.

Chegamos à Ilhota e ficamos em frente à escola rural, cuidando dos animais. Poucas lembranças restam do tempo que passamos no povoado. Recordo-me apenas de uma cena: estávamos sentados no alpendre da escola, todos tentando reavivar um passarinho sofrê, que fora vítima do badogue de um dos aventureiros. Não deu certa a tentativa e foi uma frustração para todos.

Enquanto isso, em nossas casas, os familiares estavam em agonia, sem saber onde andávamos. Não aparecemos para o almoço e somente à tardinha é que tiveram notícia. O Gervásio apareceu por lá em busca do seu jegue e informara a tia Esterzinha o nosso plano de ir à Ilhota.  Mandaram pessoas nos encontrar, mas foi providência em vão...

 A volta para casa foi cansativa, o enfado do dia era visível no rosto de cada um. Mas voltamos trazendo a jumenta, o filhote e o jegue de Gervásio.  Mal sabíamos o que nos esperavam...

Chegamos ao anoitecer, exaustos. Alfeu e Wellington cuidaram de guardar os animais. Eu e Carlos fomos para casa. Em frente ao bangalô de Seu Pierre, encontramos Haroldo e Artur que, entre sorrisos e mangação, avisavam que papai nos aguardava e a palmatória já estava preparada (na verdade era um tamanco). Foi o sinal para eu começar a chorar.

Fomos pela Praça de São João, entramos em casa pelo portão dos fundos. Sorrateiramente nos escondemos embaixo da grande mesa de jantar. Papai logo chegou e aí eu já desaguava em choro. Fui o primeiro e ser chamado, indagado, advertido pela aflição causada à família e, por fim, surrado com meia dúzia de bolos dados com a parte lisa do tamanco. Depois foi a vez de Carlos. Papai o mandou abrir a mão. Ele não abriu. Diante da ameaça de receber os bolos por cima dos dedos, cedeu. Mas não chorou, embora eu, embaixo da mesa, gritasse insistentemente, entre soluços: - “Chora Carlos, chora!” Por ser mais velho recebeu uma dúzia de bolos, mas não chorou. Com a décima segunda pancada, duas longas lágrimas desceram pelos olhos. Depois do acontecido, esse feito foi contado com sucesso na reunião da turma. E Carlos, satisfeito, empinava o nariz...

Tio João Déda cuidou de disciplinar Alfeu e Wellington. Parece que também receberam uns cocorotes. Alfeu, por ser o mais velho e o comandante da turma, foi obrigado a levar os animais de volta. No dia seguinte, quando nos reunimos na casa de vovó, disse ele que não foi até a Ilhota. Deixou os jegues no tanque da missão, na saída da cidade. E dava uma gostosa risada, balançando a cabeça para tirar os cabelos louros dos olhos...

Pouco depois, soubemos que os animais foram apreendidos pela Prefeitura e, parece-me, levados a leilão.

E assim aconteceu nossa aventura na Ilhota  e a inesquecível surra de tamanco liso...

Aracaju, 06/10/2012

Beto Déda

 

 

 


 

2 comentários:

  1. Que beleza! Que memória invejável! Mais uma vez parabéns meu caro Beto. Suas histórias certamente merecem um livro e, se você quiser, o caminho é este. Um abraço.

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  2. Caro Amâncio, você sempre me encoraja e agradeço sinceramente por tudo. Abração pra você também.

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