sexta-feira, 9 de novembro de 2012


Os bois de barro, o artesão, a gangorra, os coelhos e a "esperteza" na venda de um tacho...

 

Meus netos brincando na fazendinha 
que eu fiz, lembrando meu tempo de criança.

Neste fim de semana prolongado estivemos no Lago Dourado compartilhando de muita diversão com meus filhos e netos.  Para meu neto Miguel eu fiz uma fazendinha igual a que fazia no meu tempo de criança no quintal de minha casa, em Simão Dias. A diferença é que atualmente os brinquedos são de plástico, enquanto no meu tempo os animais domésticos e a mobílias das casas de bonecas eram feitas de argila, tudo muito bem feito. Comprávamos os bois de barro na feira da cidade, em dias de sábado, a um artesão que conhecíamos como “Saco do Pia”, nome possivelmente derivado do povoado onde ele morava. Sobre este senhor conta meu cunhado Haroldo que certa vez chegou pra ele e perguntou se venderia todo o estoque de brinquedos de barro; o artesão recusou o negócio e usou um argumento surpreendente, afirmando mais ou menos o seguinte:
- Vendo não, moço. Se eu vender agora a um único freguês, ficarei sem ter o que fazer aguardando a hora de voltar para meu sítio. Vou ficar com a cabeça pra cima, rodando que nem pinhão! Esse negócio eu não faço...
A verdade é que o senhor “Saco do Pia” se sentia feliz tanto em fazer seu artesanato como também conversar com cada um de seus fregueses. O que se deduz daquela justificativa é que o seu propósito maior não era o “vil metal”, interessava-se mais na divulgação de sua arte e em fazer feliz um maior número de crianças. Parece-me – no meu imaginário infantil que ainda hoje conservo – que a justificativa daquele simplório artesão estava absolutamente certa. E a prova disto é que ainda hoje, setentão, fico alegre lembrando-me da arte do  Saco do Pia...  
A casinha de madeira que eu mesmo construí
(eu carpinteiro) para minha neta Marina

É assim que curto a realidade, participando das diversões dos meus netos, comparando-as com as vividas por mim no passado. E nessa brincadeira, a memória passeia pelo quintal da casa da Rua dos Ribeiro onde minha imaginação descobria um mundo de fantasia transformando coisas simples em divertimento.

Certa vez surgiu na cidade um parque de diversões, instalado na Praça Barão de Santa Rosa. Serviu-me de estímulo para fazer um “parquinho” em nosso quintal. Armei um balanço, fiz uma gangorra e improvisei um carrossel (duas tábuas que eram usadas em andaime rolando sobre dois cortiços). Era o bastante para meu parque funcionar e os possíveis defeitos foram superados pela minha imaginação fértil de criança.  O pior é que caí da gangorra, o “galo” cantou em minha testa e o parque foi “desmontado”.
Lembro-me também que lá em nosso quintal criamos coelhos. Bonitos, brancos e “produtivos”. Quando menos esperávamos lá estavam os lindos e alvos coelhinhos saindo das tocas/ninhos (buracos no chão do quintal). Era uma alegria imensa que tínhamos ao defrontarmos com aqueles maravilhosos filhotes. Pena que a quantidade de buracos feitas no quintal ameaçava o alicerce dos muros, o que obrigou meu pai a se desfazer dos animais.
Mesmo sem autorização de tia Esterzinha, eu costumava guardar a ração dos coelhos em um tacho de cobre, cuja utilidade maior era cozinhar canjica e fazer doce de batata. Quando não utilizado, o tacho criava um azinhavre, de cor verde, resultante da oxidação do cobre, o que dava uma aparência de coisa imprestável. Pois bem. Nas minhas conversas com colegas de brincadeira, soube que o Sr. Cipriano, que tinha um armazém ali na Praça de São João, além comprar castanhas, também comprava qualquer coisa de cobre. Lembrei-me então do nosso tacho e não vacilei. Lá fui eu até a loja vendê-lo. “Seu” Cipriano olhou o tacho e com um bondoso sorriso disse-me:
-Ora, Beto, esse tacho está novo, apesar do azinhavre. Uma boa lavagem com sal e vinagre limpa tudo, deixando-o luzidio, da cor alaranjada, parecendo novo. O que eu compro são peças velhas, quebradas.  Não vou comprar esse não! Acredito que sua mãe não sabe dessa venda. Não é?
Saí desconfiado, aborrecido, mas bolando outro jeito de efetuar a venda. Chegando em casa, peguei um martelo e amassei o tacho, deixando-o quase descaraterizado. Embrulhei o amassado e fui ao armazém, com cuidado, perscrutando o momento em que “Seu” Cipriano não estivesse por lá. Confirmado que naquela hora quem cuidava do armazém era a esposa dele, Dona Zifinha, que nada sabia de nossa conversa. Então, efetuei a venda do que restou do tacho. Com parte do dinheiro recebido comprei uma jaca mole e voltei pra casa. Quando passava pelo parque vislumbrei os colegas de pelada que estavam sentados embaixo de um pé de tamarindo. Percebi que eles falavam alguma coisa e olhavam insistentemente para mim. Ficaram de pé e começaram a correr para cortarem minha passagem.  A intenção deles era clara e não vacilei, disparei em direção ao portão de minha casa. Alcançaram-me antes de lá chegar. A jaca foi ao chão e todos, inclusive eu, comemos avidamente os doces bagos. Reclamar?  Só depois de saborear a jaca! Foi o que fiz logo em seguida, com troca de sopapos com as mãos grudando de visgo...
Passados alguns dias, quando toda a família estava almoçando, Tia Esterzinha falou que ia fazer um doce de batata e que não tinha achado o tacho. E indagou:
- Será que roubaram? Como é de cobre talvez tenham vendido ao ferro velho. Vou perguntar ao Cipriano.
Pronto. Entrei em desespero e comecei a chorar escandalosamente, oferecendo a mão para receber a reprimenda, gritando:
-Ai meu Deus! Fui eu. Eu vendi e estou arrependido...
A reprovação daquele ato serviu-me como disciplina e me deu a noção exata de que a “esperteza” que utilizei não passou de um ardil, um artifício para lograr proveito. Aprendi a lição!

E muitos anos depois, lá pelos anos 80, ouvi de um político mineiro, o Dr. Aureliano Chaves, uma frase que se tornou famosa e que cai como uma luva no caso que acabo de narrar. Disse ele:
"A esperteza, quando é muita, vira bicho e come o dono." 
 
 Aracaju, 09/11/2012
Beto Déda

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