“Avião”, um personagem dos
velhos tempos de minha terra.
Em minha oficina de armengues,
no Lago Dourado, costumo ligar o rádio em uma estação que reproduz músicas
antigas e, ontem, ouvi uma velha canção de Anísio Silva que me despertou
lembranças de um personagem popular que viveu em Simão Dias, lá pelos anos 60.
Era conhecido pelo apelido: “Avião”.
Conto para você quem foi esse
interessante personagem.
Precisamente no ano de 1964, eu
regressei à minha terra, depois de concluir o terceiro ano do curso científico
no Colégio Estadual Duque de Caxias, em Salvador (Ba), e voltei a ser repórter
do jornal A Semana, no qual também, vez por outra, me atrevia a escrever uma
crônica, usando o pseudônimo Berto.
Naquela época, em encontros com
jovens colegas, notei que um senhor meio louco e pedinte, com cerca de 60 anos
de idade, conhecido na cidade pelo apelido de “Avião”, era sempre mencionado
pelos jovens. E as frases e o vocabulário desconexos usados pelo velho
maluco eram repetidos pela garotada. Lembro-me agora do termo "consistir", que
para ele significava flertar, namorar. Assim é que os jovens falavam
quando alguém começava um namoro ou flerte: "Fulana está 'consistindo' com
sicrano".
Pois bem, naquele tempo eu tinha
lido o livro "Dom Quixote de La Mancha", de Cervantes, e notei
que o velho “Avião” era alto, magro, barba rala, sempre usando um bastão,
perambulando pelas ruas de Simão Dias, parecendo os desenhos de Gustavo
Doré, que ilustrava o Cavaleiro de Triste Figura.
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Avião no bar da Ponta da Asa (Traços da lembrança de Beto Déda |
Foi em consequência dessa
fantasiosa semelhança que resolvi conhecer melhor aquele andarilho que
impressionava os jovens simãodienses. Procurei entrevistá-lo, para escrever um
texto e publicar no jornal A Semana. Pensado e feito. Na edição de 18-07-1964 daquele
jornal, tracei o perfil do velho “Avião” na seção "Um
personagem, uma história".
Sobre esse texto, minha memória
guarda com detalhes o encontro que tive com aquele personagem. Aconteceu em um
bar na Ponta da Asa, onde funcionava um melhor cabaré da cidade, quase no final
da Rua do Mulungu. Era início de noite e o baile do cabaré ainda não começara.
Avião estava sentado em um banco, batendo cadenciadamente seu bastão, com o
olhar fixo para o alto, enquanto o rádio do bar tocava, coincidentemente, o
bolero “Tudo Foi Ilusão”, de Laert Santos e Arcilino Tavares, na voz de
Anísio Silva, gravado em 1956.
Ao me sentar ao seu lado, ele
imediatamente disse-me que estava com uma ligeira dor de barriga e pediu que eu
pagasse uma dose de aguardente “Zinebra Guichard” que, naquela época, diziam
ser muito boa para o alegado incômodo. Percebi que a tal dor era apenas um
pretexto. Mesmo assim, pedi duas doses: uma pra ele e outra pra mim.
Enquanto conversávamos, ele bebeu em pausados goles, saboreando lentamente o
gosto apurado da cachaça. Foi uma conversa pouco elucidativa para se conhecer a
história do interessante velho. Ele não dizia coisa com coisa. Perguntei o seu
nome e ele deu de ombros. Não lembrava. Esclareceu que o chamavam de “Avião”,
mas esse era o apelido de seu cavalo, um pangaré magro que morreu atropelado na
Rua do Alambique, próximo do terreno de Antônio Fundão e a casa de Mané de
Zabé. Depois, talvez pelo efeito da aguardente, começou a cantar modinhas
antigas, entre sorrisos e soluços. Parecia emocionado, voltou a batucar com o
cajado no chão e bloqueou as velhas lembranças. Naquele momento, senti que
era o instante de encerramos a entrevista.
Lembro-me, muito bem, que uma
frequentadora do Cabaré, conhecida como Maria Paciência, estava encostada ao
balcão, acompanhando a entrevista e percebendo o insucesso de minhas
indagações, fez um sinal me informando que queria falar comigo.
A bondosa atenção de Maria
Paciência, que sempre fez jus ao seu segundo nome, foi para mim um privilégio.
Aguardou que terminasse a malograda entrevista e, então, contou-me que certa
noite tivera contato com um sertanejo que reconheceu “Avião”. O moço disse-lhe
que o velho era lavrador e morava em um sítio lá para os lados de Bom Conselho,
mas que ficou tantã da cabeça quando tomou conhecimento de que a sua amada
mulher o tinha traído e fugido com um aventureiro que passara pela região.
Inconformado com sua sorte e envergonhado, largou tudo, pegou seu cavalo e
desapareceu do local. Perdeu a memória e o juízo, andou perambulando e veio
parar em Simão Dias.
Com as informações adicionais de
Paciência, escrevi o texto, que reproduzo abaixo.
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, Artigo escrito por Beto Déda e publicado no jornal "A Semana", edição de 18/07/1964, fl.04. |
Devo esclarecer que, pouco tempo
depois da publicação do artigo, soube que o estranho e simpático “Avião”
desapareceu da cidade, surgindo a notícia de que, tal qual seu pangaré, fora
vítima de um atropelamento, passando desta para outra dimensão.
Mas, como todos os fatos são
motivos de longas discursões em cidades do interior, o destino final de “Avião”
motivou controvérsias. Meu amigo Joaquim Vitorino, por exemplo, divergia do
referido atropelamento, e afirmava que o velho voltou para os arredores de Bom
Conselho, recuperou a memória e conquistou outra mulher. Que seja! Até hoje,
torço que tenha ocorrido a versão de Vitorino.
Por fim, para não esquecer os velhos tempos da Ponta da
Asa, também é bom ouvir o bolero de Anísio Silva, música muito tocada naquele
ambiente.
Aracaju, 12/11/2023
BETO DÉDA