domingo, 27 de dezembro de 2020

 

Nadando no poço do Caiçá, em:

“um passado diverso e melhor”.

 

 

O livro “O queijo e os vermes” é um best-seller, no qual o historiador Carlo Ginzburg narra a perseguição sofrida por um moleiro italiano, conhecido como Menocchio, por causa de sua incomum cosmogonia, em processo movido pela Inquisição no século XVI. Ginzburg se aprofunda no estudo do processo, descobre e faz comparações das leituras e interpretações do perseguido moleiro, de modo a entender melhor o que se pensava naquela época, ou seja, o alcance histórico que aquele acontecimento descortinava.


Estive relendo o citado livro e, mais uma vez, deparei-me com uma interessante afirmação do citado historiador ao comentar as ideias do Menocchio, que contestava a Igreja rica e corrupta do seu tempo com a Igreja primitiva que, na visão dele, era pobre e pura. Afirma Ginzburg:


“Apenas nos períodos de aguda transformação social emerge a imagem, em geral mítica, de um passado diverso e melhor – um modelo de perfeição, diante do qual o presente aparece como declínio e degeneração”.


Pois bem. Nesta época em que vivemos dias de isolamento, diante dos efeitos de uma mortal pandemia, só nos descortina, inexoravelmente, um horizonte nebuloso, conforme previsão de respeitáveis médicos. E esta situação se agrava para os idosos – particularmente para mim,diante dos benditos quase oitenta anos alcançados – de modo que me contento com o encanto da visão que tenho do passado, em consonância com o que diz o historiador italiano.


Isto naturalmente acontece quando volto meus pensamentos ao tempo de criança, na primeira metade dos anos 50, vivendo nos arredores da Rua dos Ribeiros, em Simão Dias, em que aproveitava, com vigor, cada momento de encanto que a vida nos oferecia.


E repasso, aqui, as lembranças que tive nesta manhã ensolarada, aqui no Lago Dourado.


Recordo que nas manhãs quentes dos domingos sempre aconteciam as peladas na Praça de São João, usando como bola uma bexiga de boi inflada. Depois do jogo, íamos nos refrescar no poço do riacho Caiçá, perto do Matadouro, em uma baixada em frente ao sítio de seu Manoel do Curral.  A correnteza era límpida, transparente, dando a falsa ideia de que o poço era raso; fato que surpreendia os novatos que não sabiam nadar e eram socorridos pela meninada já escolada.




Ao me lembrar do banho no Caiçá, dispara em minha memória outra lembrança. Naquele tempo, o comum para as crianças era o uso de calças curtas, com suspensórios. A única calça comprida que eu tinha era a da farda do Grupo Escolar Fausto Cardoso. E era um pouco puída no fundilho, gasta de tanto descer deslizando no corrimão cimentado da escada do Grupo. 



Eu ansiava por usar calças compridas e algumas vezes, furtivamente, usava a calça da farda mesmo sem ir à escola. Um dia, depois da brincadeira de bola de gude, fui com a turma nadar. Depois do banho no refrescante poço, quando fui vestir a calça  foi que percebi que tinham dado nós nas pernas da farda e a umedeceram com água do Caicá, ou seja, aplicaram a famosa jabá, como era conhecida entre os nadadores daquela época. O pior é que tive que usar os dentes para desatar o nó de cada perna da calça. Enquanto desatava, babava e espumava de raiva, a molecada gritava ao longe:

“Então, Beto, a jabá tá doce ou salgada?”

Arre égua! Era salgada e tinha o ranço da água salobra do Caiçá!

Naquele dia fiquei fulo da vida, mas logo depois passamos a rir do acontecido e fomos comprar mangas no sítio do seu Manoel do Curral. Ele era um senhor sisudo, não tinha tempo para prosa com a meninada e nos causava certo receio: o pomar dele era intocável! Em outros sítios, cajus e mangas não eram comprados. Passávamos pelo meio do meio do arame farpado das cercas e pegávamos os frutos.  Em troca, as camisas eram marcadas com o rasgo provocado pelas farpas do arame. E os rasgos tinham a forma de um “L”, que a garotada interpretava como uma marca feita pela caipora, para sinalizar os meninos que se apropriavam de frutas de sítios que não lhes pertenciam.


Estas lembranças não têm preço... Não importa que me chamem de saudosista inveterado. E daí? Nesta época de infortúnios – de todos os tipos – temos que nos isolar. E o refrigério é reviver o passado, lembrando quando desfrutávamos uma infância e juventude com muita energia, força e felicidade.


É isso...  E a vida continua!


Aracaju, 27/12/2020

BETO DÉDA


2 comentários: