quarta-feira, 15 de setembro de 2021

"Memórias de Caduda": o livro inédito de Carvalho Déda. 


Meu pai, José de Carvalho Déda, planejava publicar um novo livro e começou a escrevê-lo lá pelos meados de 1966. Infelizmente não conseguiu porque faleceu em 02 de setembro de 1968, antes de completar seu projeto.

Em meus arquivos mantenho os rascunhos dos textos que ele escreveu e os colecionou em uma pasta especial com a inscrição em letras graúdas: “Memórias de Caduda”. Certamente ele utilizaria este título para o novo livro.

No seu trabalho diário como jornalista, Carvalho Déda gostava de usar pseudônimos em seus escritos. E realmente usou muitos deles, destacando-se os de: João Sem Terra, Leonardo da Vinci, Carlos Eugênio, Cadeda, Pakéso, Lynce, Carlos Eugênio, Marco Aurélio, Lynce, Trajano, Zélis, ZD, Caduda e Seu Ambrósio. 

Tantos pseudônimos despertaram minha curiosidade. Assim é que em uma tarde, ao final de um dia de trabalho, quando ele aproveitava uma hora de descanso em sua cadeira de balanço na redação do jornal A Semana, indaguei-lhe sobre o sentido do uso de tantos apelidos. Então, ele esclareceu que usava para evitar a repetição de seu nome nas páginas dos jornais que publicavam seus textos.

Sonhei com meu pai no início deste mês e me lembrei do seu livro inédito. Não perdi tempo e passei a reler alguns rascunhos. Sempre me encanto com seu modo simples de escrever. Começo a ler e não penso em parar. Nas páginas iniciais do livro inédito ele cria seu personagem, batizando-o com o nome de Seu José Ambrósio, e o descreve como uma pessoa popular, que morava no sítio denominado Cutiaonde era conhecido pelo alcunha de Caduda. Depois, em páginas soltas, ele apresenta uma série de artigos, poesias e trovas sobre fatos de nossa região. 



Qualquer dia desses tentarei organizar os escritos daquela pasta,  ordenando os textos com o propósito de realizar o intento de meu pai, publicando seu “Memórias de Caduda”.

Enquanto isto, repasso para os parentes e amigos alguns tópicos das primeiras páginas, para que tenham ideia daquela pretensão.



MEMÓRIAS DE CADUDA

(Breves tópicos da parte inicial do livro inédito de Carvalho Déda)


Caduda é uma alcunha dada pelos sertanejos aos indivíduos chamados José, desde que tenham outros irmãos … É, como parece, uma corruptela de caçula.

Conheci, por estes sertões dos meus pecados, muitos Cadudas; entre todos, porém, guardo a lembrança de um “da rede rasgada”, que viveu seus últimos dias num sítio denominado “Cutia”. O seu nome próprio era José Ambrósio... mas todos o chamavam de Seu Caduda...

Já o conhecia por suas façanhas. Aliás, seu nome era referido pelos sertanejos, a propósito de tudo: assim pensa Caduda... é o que diz Caduda.. isso é o que acha Caduda...

Não havia, numa grande redondeza, quem não conhecesse o sitiante de Cutia. De nosso primeiro encontro, fiquei sabendo tratar-se de um homem prático, inteligente, observador, dono de relativa cultura, e, talvez, com algum parafuso aluído na sua máquina de pensar.

Até os vinte anos de idade era completamente analfabeto. Olhando para uma cartilha do ABC, era como um burro olhando para um palácio.

Um dia, ainda moço, viu-se envolvido em uma briga de feira, quando desfechou mortífero golpe de facão na cabeça de um soldado arrelienta. Processado e preso, foi conduzido ao Engenho da Conceição, um presídio com fama de moderno, existente na capital do Estado, onde aprendeu um pouco de leitura e escrita, e, ainda, uma arte.

Ao cabo de seis anos de reclusão... Cumprida a pena, Caduda empregou-se como artesão, num convento... Nas horas de descanso lia. Lia com avidez o que encontrava pra ler: jornais velhos, almanaques, versos de João Ataíde, trapos de papel etc.

Deixando o serviço do convento, empregou-se como contínuo numa repartição pública, onde tomou ojeriza ao funcionalismo. Ali, conheceu os segredos da burocracia brasileira e conseguiu amealhar algumas patacas, com as quais compraria, mais tarde, o sítio Cutia, no qual viveu sua vida de celibatário e onde recebia os amigos e admiradores, que iam ouvir a sua agradável prosa, seus conselhos e seu particular modo de filosofar.

Quando atribuíam sua relativa cultura ao fato de ser homem viajado, respondia, contraditando:

- Não são as viagens que ensinam, mas a leitura constante, com interesse de aprender. Vejam vocês que não há mais viajado do que cavalo de cigano, mas nunca passa de um simples cavalo de cigano...

Fui um assíduo ouvinte de Caduda, lá no seu sítio Cutia. A última vez que o visitei, encontrei-o no leito da morte.

Fazendo esforço, retirou debaixo do travesseiro um maço de manuscritos que me entregou dizendo: leve isto...houve um tempo que andei querendo publicar um pequeno caderno, não direi que seria minhas memórias, porque são notas esparsas, desconexas, escrita ao léu; recordações, diários, bobagens, enfim...

Guardei os manuscritos com interesse. Alguns anos depois da morte do esquisito personagem de Cutia, pensei em publicar os seus baralhados escritos num pequeno caderno, que dei o pitoresco título de “Memórias de Caduda”... "


O que transcrevo acima, são apenas alguns trechos do início das anotações, que são seguidas de crônicas e trovas que descrevem fatos e personagens dos anos 50/60 em nossa região.

Não é demais repetir que me empolgo relendo os textos do meu saudoso pai, o que me motiva a debruçar-me sobre referidos rascunhos para ordená-los e publicá-los. Para isto, rogo ao bom bom Deus que não me falte um pouquinho de engenho e arte para concretizar o que ele planejou.



Aracaju, 06/09/2021

Beto Déda



8 comentários:

  1. Excelente projeto!! Também me encanto com seu modo de escrever e suas vivências. Te amo!!

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  2. Respostas
    1. Espero que fique bom mesmo. Papai sabia contar histórias e fazer trovas e poesias.

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  3. Excelente, tio Beto! Seus textos são deliciosos de ler. Parabéns.

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  4. Aprendi com meu pai. Ele era mestre em escrever de modo simples. Esta a razão de selecionar seus rascunhos das "Memórias de Caduda".

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  5. Olá!!! Acho que não conheci seu pai José de Carvalho Déda. Adorei a publicação!!! Maravilhosa!!!
    Sou Cláudia Lucia Déda e Guefes, filha de Sinito, Geonisio Batista de Carvalho zdeda

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    1. Olá, Cláudia! Sempre escrevo em meu blog sobre assuntos de minha infância em Simão Dias e também sobre nossos familiares. Meu pai foi jornalista e escritor, escreveu os livros: "Brefáias e Burundangas do folclore sergipano", "Simão Dias fragmentos de sua história" e "Formiga de Asas".
      Conheci seus pais no Rio. Eles me visitaram quando estiveram aqui em Aracaju.
      Acompanho suas postagens aqui no Face. Fiquei alegre com sua mensagem.

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