segunda-feira, 2 de outubro de 2023

 

Um inesquecível texto escrito por meu pai.

 

 

 

Nestes últimos dias, recuperando-me de uma leve entorse no pé, fiquei repousando em  casa. E preencho meu tempo lendo alguns livros e, principalmente, relendo textos escritos por meu saudoso pai.  Assim é que me deparei com uma pitoresca estória que ele escreveu sobre o sepultamento de um oficial da Guarda Nacional.

 

Carvalho Déda na redação do jornal "A Semana".


Recordo-me, como se fosse hoje, a cativante forma como meu pai contou-me aquele fato. Ele estava sentado em frente à sua máquina de datilografia e, depois da narrativa, percebendo meu incontrolável sorriso, ele escreveu o texto que foi publicado na edição do jornal “A Semana”, edição de 16 de julho de 1966. Já reli várias vezes essa lembrança, e o sorriso se repete.

 

Como é do meu feitio compartilhar com parentes e amigos minhas emoções, posto a seguir o referido texto.

 

 

“VÔTE, SEU ALFERES!

 

Escrito por Carvalho Déda

 

Eu devia ter quinze anos de idade, quando assisti, ali na então Vila do Coité, do vizinho Estado da Bahia, a uma tragicomédia.

Vítima de terrível indigestão, falecera, na véspera, o honrado Alferes Raimundo Santos, mais conhecido por Alferes Raimundo Pé-de-Ferro. Era um oficial da Guarda Nacional e residia no lugar “Trambeque”, a cerca de três léguas de distância da Vila, onde ocorrera o sepultamento.

Causou estranheza o fato de o corpo não ter sido levado diretamente para a Igreja, onde receberia a “encomendação” a que fazia jus sua alma de bom católico e homem de bem. Nem ao menos fora levado diretamente para o cemitério. Foi levado para a oficina do marceneiro Chico Vitor. Os donos do defunto explicaram: – para consertar a tampa do caixão que não fechava.

O marceneiro Chico Vítor, de mangas arregaçadas, óculos na ponta do nariz, careca morena polida, foi tomando as novas medidas para o remendo da urna mortuária. Foi quando vi a cena que se agarrou para sempre na minha retina de menino curioso. O finado alferes Raimundo dentro do esquife apresentava uma inchação exagerada, que impedia o fechamento da urna, feita de boa peroba. Com sua farda de alferes da “briosa”, o defunto, notadamente a barriga, crescia em sentido vertical. A calça já não alcançava o volumoso ventre onde os gases da indigestão se acumulavam, nem ao menos cobria os bordados vermelhos de pé-de-galinha, na alva ceroula de algodão. A vistosa túnica azul marinho, de botões e alamares dourados, andavam muito longe de abotoar, deixando nua a barriga de um moreno liso de peles esticadas, ameaçando estourar.

O Alferes morrera empanzinado e a cada minuto que passava a barriga ia crescendo, lotada de gases, impedindo que a tampa do caixa funcionasse.

Enquanto o marceneiro cuidava da nova tampa, a vistosa fardeta do defunto ia despertando a curiosidade popular. E foi juntando gente. Foi quando apareceu o saldado de polícia Osório dos Santos, um sarará que era a única peça militar do destacamento local.

Quando o saldado viu o defunto fardado, empertigou-se, trepou-se nos seus calcanhares e fez a continência disciplinar. Em seguida, determinou, com autoridade: - o enfermo fica embargado. Tem direito às honras militares e eu vou preparar a “companhia de guerra”.

Ele mesmo, sozinho, era o único soldado que compunha a “companhia de guerra” para as continências fúnebres indispensáveis. E saiu para as providências.

Afinal, o mestre Chico Vítor declarou corrigida a tampa do esquife, que foi fechado e conduzido com grande acompanhamento de curiosos para o cemitério, onde seria aguardada a “companhia de guerra”. E lá vai, a passo triste, o enterro do alferes. No cocuruto da tampa do caixão, o quepe de oficial com a sua pala preta de oleado e os seus bordados amarelos.

No cemitério, para que corresse alguma “viração” no cadáver, o caixão foi descoberto. O sol nordestino, mais quente às onze horas, incidia impiedosamente na barriga inchada do defunto.

A “companhia de guerra” demorava, mas a demora era justificável, pois o soldado Osório, como único responsável pela cerimônia, ainda estava dando a última “mão de kaol” no material de guerra: botões da túnica, cabo de latão do refle “rabo-de-galo” e fivela do cinto com “patrona” de sola.

Por fim, a “companhia” foi chegando. O soldado, com sua farda azul surrada, refle balançando na cintura, “comblain” ao ombro, marchava sozinho, mas garbosamente, sob o seu próprio comando. Ao chegar em frente ao caixão fúnebre, comandou-se, com bossa militar: - Alto! Deu um passo à retaguarda, tomando posição de atirador. O suor corria abundante pelo seu rosto cor de manga-rosa. Olhando para a assistência, comandou-se: - Companhia, atenção! Fôôô…go!...

Chico Vítor, Silvestre fiscal e Mestre Xandu tamparam os ouvidos e fecharam os olhos para quebrar a esperada violência do tiro de festim. Mas a carabina do soldado fez “quê-crêfo”, negou fogo! O soldado explicou: - Cartucho velho e uma desgroja repetiu a munição fria, resto da guerra do Paraguai!...Não desanimou, porém, e brado de comando: -Companhia! Fô ô go! A carabina tornou a “mentir fogo”, mas, justamente neste momento, por uma coincidência triste, ouviu-se um estranho estampido fofo, que não partiu da arma do soldado, mas do próprio defunto. O estranho estampido foi seguido de um terrível fedor que encheu o cemitério. Chico Vítor, Silvestre e Mestre Xandu tiraram os dedos dos ouvidos e taparam as narinas.

A barriga do Alferes havia estourado! Com violência, dos gases acumulados, substituíram, na cerimônia, a velha “comblain” do disciplinado soldado. A barriga do defunto estourou pelo lugar próprio.

O soldado, que era ele sozinho a sui generis “companhia de guerra”, vermelho como uma baeta, suando como tampa de chaleira, jogou a carabina ao chão, tapou o nariz e exclamou fanhoso: - Vôte’, seu Alferes!...”

     (Texto de Carvalho Déda – jornal “A Semana”, edição de 16.07.1966).

  

Depois desta leitura, espero que não tenha lhe faltado um bom sorriso.

 

Aracaju, 02/10/2023

Beto Déda

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