Os óculos de um leitor obstinado…
Recentemente tomei conhecimento que uma querida amiga passou a usar óculos. Pareceu-me com absoluta razão o oftalmologista ao lhe prescrever o uso de lentes para descanso da vista, diante da atividade que ela se dedica diuturnamente: ler e pesquisar. Notei que os óculos se ajustaram perfeitamente em seu rosto simpático. E por falar em óculos, me ocorreu a lembrança de um conto que tomei conhecimento há muitos anos
Embora o conto que pretendo narrar não tenha nada ver com minha amiga, devo esclarecer que dois pontos despertaram minha memória para uma história que tive conhecimento quando era jovem: o uso de óculos, o fascínio pela leitura e o atual estágio de conflitos por que passa a humanidade. Não estou seguro se esse conto eu li em um livro da biblioteca de meu pai, ou se foi ouvindo um programa radiofônico de contos macabros, transmitidos pela Rádio Nacional, com o título “Incrível, Fantástico e Extraordinário”. Também pode ter sido um filme que assisti no Cine Ypiranga, em Simão Dias, ou talvez eu tenha visto na televisão, em Salvador, quando era estudante. Mas essa dúvida sobre a autoria e a origem do conto não me desvanece da ideia de transmitir o que minha memória guarda da incrível história, envolvendo um par de lentes, um leitor obstinado e uma estúpida guerra. Então, confiando na memória, narro a história, preenchendo os vazios da lembrança usando a criatividade.
Um senhor de meia idade, bancário, chefe da tesouraria de um banco, era um inveterado leitor que vivia em uma grande metrópole. Ele era dessas pessoas que liam até durante as refeições. Nunca deixava de ter um livro ao seu alcance e quando não era possível, distraía-se lendo jornais, folhetos de propaganda e bulas de remédios. Era um tarado por leitura e, como era míope, usava óculos com lentes de grau, parecendo fundo de garrafa.
Naquele tempo, os chefes das grandes nações estavam em conflito, prevendo-se uma devastadora guerra nuclear. A cidade onde residia o obstinado leitor estava em pânico. Era um caos inquietante. A iminência de uma catástrofe deixava a população daquela capital intranquila e ruidosa. Nesse ambiente, o bancário e incansável leitor, sabendo que o infernal barulho das ruas prejudicaria sua concentração nas leituras, procurou uma solução. A caixa forte do banco era grande e tinha horário eletrônico programado para abrir e fechar a grande porta de aço. Então ele teve a ideia de passar aquela noite no grande cofre, onde o silêncio era sepulcral. Ali poderia ler, sem a perturbação do alarido das ruas. Providenciou livros, café e sanduiches e no horário programado para o fechamento automático da porta de aço, penetrou no grande cofre. Passou a noite trancado, deslumbrando-se em uma viagem maravilhosa que se lhe apresentava em sua imperturbável leitura. Na manhã seguinte, no horário programado, a porta automática abriu. Ele espreguiçou-se e saiu da caixa forte, deparando-se com uma paisagem de horror.
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Imagem dos efeitos da guerra divulgado nas redes sociais via Google |
A cidade estava destruída, o silêncio era interrompido apenas pelo som de uma brisa sufocante. O que se avistava era o caos: prédios destruídos, automóveis em desalinho e, o pior, sem um único vestígio de pessoas; nem mesmo se avistava corpos mutilados. A população fora aniquilada, dissolvida, desaparecera como por encanto. Talvez um raio mortal tenha fulminado os corpos. O bancário fitou os escombros, limpou o embaçado óculos e sentou-se pensativo. Horrorizado com aquela paisagem, avistou ao longe o prédio onde funcionava a Biblioteca daquele bairro. Era um edifício antigo, que ficava no alto, com uma grande escadaria em frente. Ele diariamente a visitava.
Tomou fôlego e andou entre os escombros em direção ao local da Biblioteca. Ainda segurava em sua mão um livro clássico: “Guerra e Paz”, de Leon Tolstói. Aproximou-se do prédio destruído e notou que uma parte não atingida apresentava vários livros esparramados ao lado de uma estante caída. Lamentando os efeitos da guerra, sentiu um lampejo de alegria e exclamou com seus botões: “Nem tudo está perdido”. Arrumou alguns livros ao pé de uma poltrona empoeirada e admitiu que somente lhe restava passar o resto da vida lendo, solitário. Olhou ao longe um exemplar da obra de Ernest Hemingway (Por Quem os Sinos Dobram), pegou-o e, quando ia sentar na poltrona, foi surpreendido por uma explosão, possivelmente provocada por um vazamento de gás. O susto o estremeceu e os óculos do inveterado leitor caíram no chão.
Então, sem enxergar quase nada, o infausto bancário se abaixou e, tateando, passou a mão pelo chão, procurando encontrar os óculos. Encontrou-os, mas teve a sensação triste de notar que as lentes estavam em farelos, imprestáveis. Expressou sua emoção, em um grito de lamento e dor. Com as pernas trêmulas, deu alguns passos, tropeçou em pedras soltas e caiu, rolando degraus abaixo e quedando-se para não mais se levantar. Perdeu tudo que queria e, em transe de desespero, esvaiu-se resignado, sendo tragado por um raio mortal, da destruidora guerra.
Aquele desesperado senhor, atordoado com aquela triste situação, apegou-se ao que lhe restava: a leitura. Pouco durou seu alívio. Um simples par de lentes quebradas frustrou todo seu sonho e foi engolido pelo raio mortal de uma terrível guerra.
...
Ao concluir esse texto, devo repetir que a essência desse conto de final trágico eu li, ouvi ou vi em algum lugar: um livro, uma revista, um filme ou na televisão, lá pelos início da década de 1960. Não me lembro onde e nem recordo o seu autor. O certo é que usei minhas palavras para transmitir, aqui e agora, para os parentes e amigos, a tristeza e o horror que causa os descontrolados conflitos entre os homens. Não podemos admitir que o ódio, o preconceito e a força sem limites das armas sejam um perigo para a coletividade. Do mesmo modo não podemos admitir que não sejam responsabilizados e punidos os que planejam e praticam atos violentos. A falta de punição agrada os facínoras, estimula a repetição de ilegalidades e provoca guerras.
Não podemos esquecer que, atualmente, a humanidade defronta-se com conflitos entre as nações que abalam a segurança do mundo.
Que Deus nos livre da agonia vivida pelo personagem do conto.
Aracaju, 17/03/2025
Beto Déda
Mais uma história para alegrar meu dia!
ResponderExcluirSeu comentário alegrou minha noite. Obrigado!
ResponderExcluirQue reflexão linda, tio Beto! Certamente ela está mais bonita que a original. E a sua análise é emocionante.
ResponderExcluirEu lembrei imediatamente do personagem de Vargas Llosa (o jornalista quase cego que lutava o tempo todo com os seus óculos precários).
A paixão pelos livros e a destruição deles me lembraram também de uma frase de Ghandi (que era indu) afirmando que se todos os livros do mundo se perdessem e O SERMÃO DA MONTANHA fosse preservado, nada estaria perdido.
Lembrei-me ainda da reflexão de Cervantes em Dom Quixote sobre o poder da ficção. Para ele a boa ficção ilustra melhor a realidade que os próprios fatos, pois acentua aspectos da realidade, dando-lhes maior destaque e chamando a atenção para a observação dos detalhes que se quer acentuar. Foi isso que esse conto lhe fez perceber, despertando os seus sentimentos humanistas para ilustrarem o horror da guerra.
Este texto é uma excelente reflexão para o dia de hoje, quando o louco que governa a maior potência militar do planeta afirmou que "as portas do inferno se abrirão" para o povo palestino.
Parabéns!
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ExcluirQuerido Marco, você não tem ideia da admiração que temos por você, por seu modo de se expressar e por sua cultura. Que bom saber que você gostou do que escrevi. Receba meu forte abraço.