terça-feira, 26 de março de 2013


Na  tipografia, merendando pão quente, café forte e doce de leite.

 

Recentemente meu sobrinho João Déda, que é um excelente gourmet, iniciou no facebook postagens sobre como degustar as coisas boas da vida, especialmente de pratos com iguarias deliciosas. Lendo seus escritos e mesmo percebendo que cuidam de cardápios refinados, lembrei-me dos velhos tempos quando os lanches, embora simples, também eram saborosos e compartilhados alegremente com inesquecíveis amigos. Para que não se percam no tempo, repasso aqui essas recordações para meus queridos netos e também para aqueles que viveram aquela época e gostam de relembrar fatos de nossa terra.

O lampião 'Petromax'
Meu primo Valter Oliveira era um tipógrafo de mão-cheia. Durante um período ele foi o chefe da oficina d’A Semana, e cuidava com esmero para que o jornal circulasse certinho aos sábados pela manhã. Dessa forma, a impressão do jornal estava sempre concluída nas tardes de sextas-feiras. Acontecia, porém, em algumas ocasiões, que a composição ou a impressão atrasava e tínhamos que fazer serão, passando das vinte duas horas, quando o motor da usina parava de gerar emergia para a cidade. Aí, então, os trabalhos continuavam sob a luz de potentes lampiões que funcionavam a querosene, com camisa de seda incandescente, chamados “petromax”. Era em noites assim que se comentava sobre futebol, cinema e se merendava o pão quente da Padaria de Seu Oscar Rocha, que ficava ali próximo. Àquela hora da noite, é claro, a loja da padaria já estava fechada, mas os padeiros nos atendiam por uma porta cortada ao meio, que ficava ao lado da Rua Mulungu, defronte ao prédio que pertencia ao Seu Dorinha, onde funcionou o Banco do Brasil.

Eu era o encarregado de comprar os pães. A recomendação de Valter é que deveriam ser bem amanteigados e nisso os padeiros não faziam economia, usando grande espátula, de modo que manteiga escorria pelas mãos.  Em uma lata, com água e pó de café, sobre um fogo feito com papel picado, retirado debaixo da mesa da guilhotina, fazíamos em poucos minutos um café forte (não se coava o pó) de melhor qualidade, que degustávamos com o saboroso pão quente amanteigado. Uma delícia que até hoje, ao lembrar, me deixa com água na boca.

Esses serões continuaram acontecendo depois, sempre que ocorria atraso na composição do jornal, quando o chefe da tipografia era Luiz Santa Bárbara.

No início das tardes, meu primo Armando passava pela tipografia com um tabuleiro de copos de doce de leite e de banana feitos por tia Pequena. Eram vendidos tanto lá como na tenda da fábrica de calçados Sidon, que ficava próximo e pertencia ao meu tio Paulo, onde também trabalhava o tio João Déda. O doce era transportando em pequenos copos de vidro, coberto com papel manteiga, para proteger das moscas e dos dedos dos gulosos.   Com a colherinha detonávamos o papel, fazendo um ruído característico, e nos deliciávamos com a guloseima.

Certa tarde, Luiz Santa Bárbara e um dos auxiliares, o Luiz Carlos, filho de Seu Isidro, iniciaram uma discussão sobre quem mais gostava do doce de leite. Então o Luiz Carlos afirmou que seria capaz de comer mais de dez copos de doce, o que foi contestado pelo chefe. Resolveram então pagar para ver. Acertam, por fim, que o Santa Bárbara pagaria todo o doce, caso Luiz Carlos comesse mais de dez. Sacramentada a aposta, Luiz Carlos começou a saborear o doce. Quando estava no sexto copo, afirmou que teria que tomar um pouco d’água. Discutiram esse ponto e no fim foi acordado que ele teria que tomar uma cuia cheia (metade de uma lata de queijo do reino, vasilha que era usada para beber água). Depois de saciar a sede, o colega Luiz Carlos passou a comer o doce bem devagar... e não passou do nono copo. Engulhou, começou a vomitar e desistiu do confronto, afirmando desanimado:

- Vôte! Que enjoo arretado. Nunca mais vou comer doce de leite...

Perdida a aposta, com o semblante triste, pálido e suando frio, ele foi para casa cedo, curtindo uma dor de barriga sem limites.

Ainda durante as tardes, depois da impressão de uma página do jornal – era impressa uma página por vez, no decorrer da semana –  jogávamos basquetebol em uma quadra improvisada no apertado quintal da tipografia. Nunca passavam de seis jogadores; normalmente éramos quatro. Jogo bem divertido, com regras ali mesmo acertadas, só parávamos quando todos estavam bastante cansados e suados. Depois de um ligeiro descanso, pensávamos no lanche. Aí também não deixava de ter o gostoso pão da Padaria de Seu Oscar, mas o acompanhamento não era a manteiga nem o forte café. Comprávamos uma lata de quitute e duas garrafas de refrigerante Caçulinha no Bar de Pedro Mendes, que ficava vizinho à tipografia, era parede-meia, como se dizia na época. O lanche era dividido salomonicamente e consumido com avidez.
Por fim, para ser fiel a narração deste fato, não nego que se seguiam arrotos escancarados que, quando ouvido por um adulto, eram devidamente esculachados...

E os dias se passavam, o jornal era editado, brincávamos bastante, merendávamos e, como diz o colega e amigo Zé Raimundo Araújo:

Éramos felizes e, diferente do jargão poético, sabíamos que éramos!”

 

Aracaju, 25/03/2013

Beto Déda

domingo, 10 de março de 2013


O  fenômeno da seca, ontem e hoje.

 

Uma ligeira apreciação do que se passa atualmente em nosso Nordeste merece uma reflexão.  Repete-se aqui o fenômeno climático da seca, agravado pela ação do homem que agride o meio ambiente, devorando com ganância nossas matas. E essa ação ocorre em todo nosso planeta, onde o  efeito estufa gera o aquecimento global com consequências desastrosas para o meio ambiente. Enquanto aqui é o calor e seca, em outras regiões são as chuvas estragando tudo, ou as nevadas e o frio causando morte e destruição.


O Lago Dourado antes da seca
O Lago na atual seca. Uma imagem não vista
há mais de 30 anos
Os efeitos da seca também estão presentes na zona litorânea, atingindo Aracaju e modificando sua paisagem. O Lago Dourado, que é o encanto  dos meus netos, também sofre os castigos da falta de chuvas e apresenta uma triste paisagem, que não se via há mais de 30 anos. Para se ter uma ideia, observe as duas fotos significativas que demonstram o alcance da estiagem em nosso litoral.
 
 Recentemente, comentando uma postagem que aqui editei, o amigo José Amâncio apresentou uma dúvida que paira sobre todos nós que passamos dos sessenta janeiros. Dizia ele que não tinha certeza se o tempo de nossa infância era ou não melhor que o da atualidade, diante do progresso e das facilidades que ocorreram nesse passar de mais de seis décadas. E agora, enfrentando o fenômeno climático que se repete em nossa região, faço uma ligeira reflexão, comparando a situação de hoje com a que acontecia outrora em nossa terra natal.

Pois bem. Do passado, quando eu era criança em Simão Dias, guardo duas lembranças pontuais de tempos de seca.

Uma delas, de recordação alegre e descontraída, acontecia quando recolhíamos água no poço da Usina Elétrica, que ficava na Praça de São João, em prédio vizinho à Cadeia Pública. A Usina fornecia energia para a cidade e era administrada por Seu Zuzu, um conhecido técnico em mecânica da cidade. O poço ficava sob os cuidados do zelador chamado Broco, que a criançada não deixava de caçoar, mesmo temendo sua estranha figura. Ele era meio surdo, magro, barba rala com cavanhaque, usava um pequeno e surrado chapéu de couro e uma bolsa também de couro que carregava fumo e um cachimbo. Junto com outros amigos moradores daquela praça e vizinhança fazíamos filas em frente ao chafariz, em uma algazarra alegre e cheia de chistes ao lado das latas e caldeirões, que depois de cheias transportávamos para encher os porrões de casa. A usina funcionava das 19 às 22 horas e o poço fornecia água aproximadamente nesse horário. Enquanto aguardávamos a vez de pegar água, brincávamos em volta do prédio que abrigava o motor gerador de energia. Certa vez, um garoto ingênuo achou e pegou uma camisa-de-vênus, pensando que era uma bola de assoprar. No local se avistavam muitas. Diziam que eram largadas ali por Seu Zuzu, depois de usá-las na fornicação com uma mulher chamada Tundê. Fizeram uma gozação danada com o garoto, dizendo que ele tinha assoprado a tal borracha...
 A verdade é que para a criançada a busca de água era uma novidade e motivo de brincadeiras.

Outro fato que não me sai da memória mostra outra realidade daquela época. Recordo-me a tristeza dos pobres lavradores, desvalidos, flagelados, sentados nas calçadas, esperando a demorada e pouca ajuda da população e dos órgãos públicos para conceder-lhe as migalhas do alimento necessário à sobrevivência.  Era um quadro horroroso, de miséria e de abandono em que o sertanejo cabisbaixo, sofrido, passivamente suportava a tormenta da fome, na esperança de que uma mão benfazeja amenizasse seu sofrimento. Essa escancarada visão de miséria amargurava o meu íntimo de criança e até hoje, ao lembrar, me comove. Creio que aquele lastimável quadro despertava dó até mesmo ao mais empedernido coração.  

E justo nesta comparação, vejo que nos dias de hoje surge uma paulatina melhora na situação do sacrificado nordestino. Atualmente não se registra a fila de flagelados sentados nas calçadas esperando uma incerta ajuda.   Os programas governamentais destes últimos anos, bem definidos e normatizados, de modo especial aqueles voltados para zerar a miséria no país, têm trazido resultados importantes, repercutindo favoravelmente na situação dos que sofrem o flagelo da seca.

Sem qualquer propósito em defender conceitos do meu pensar ideológico, ou mesmo modificar o pensamento daqueles que têm ideologia diferente, não posso acreditar que os que viram o quadro dantesco dos flagelados do passado sejam contrários aos programas que procuram amenizar os sofrimentos das classes menos favorecidas.
...

Esses eram dois pontos controvertidos de minha visão de garoto. Um, traduzia a alegria exuberante da flor da idade, brincando na busca de água escassa.   A outra, a melancolia de notar o sofrimento e a angústia daqueles que não tinham alimentos para matar a fome que os definhavam.

E o tempo passa e a seca se repete...

Aracaju, 09/03/2013

Beto Déda

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

 

Lendo, vendendo gibis e enfeitando paredes.

Uma coisa que me deixa desolado, pesaroso mesmo, é quando ouço alguém repetir a triste frase de que “o lugar certo de parente é em retrato na parede”. Quem assim pensa deve ter um trauma horrível e, certamente, não recebeu ensinamentos valiosos de seus ancestrais. Na graça do bom Deus, o exemplo que tivemos de nossos queridos pais foi de reverenciar a união familiar. Confirma isto a numerosa família que vivia sob o mesmo teto, seguindo a orientação e liderança deles. Não era sem razão a existência de duas grandes mesas nas salas de nossa casa. Nas refeições diárias não éramos apenas os oito filhos do casal Zeca/Sinhazinha Déda. Nos dias normais, no almoço, sentávamos dezesseis familiares e, segundo estatística de tia Esterzinha, aos sábados o número ultrapassava a casa dos vinte. O melhor de tudo é que  papai e mamãe se sentiam felizes com isso.
Seguindo essa orientação, sempre mantivemos um carinho muito grande, indistintamente, com todos os parentes e, de modo especial, com os queridos irmãos e irmãs.  
Carlos quando recebeu
o diploma do Grupo Escolar
Fausto Cardoso
Pois bem. Na minha infância, devido a aproximação de idade, era mais unido com o Carlos, que contava com apenas dois anos mais do que eu. Com ele, participava de todas as suas brincadeiras de criança. Era quem me liderava. Além do mais, para me proteger, eu fazia uma propaganda danada do seu tamanho e de sua força. Era assim que eu me livrava da ameaça dos garotos maiores. Lembro-me, agora, que tinha um menino chamado Arnaldo de Caboclo, morador da Rua do Pastinho, que costumava me derrubar  das bicicletas alugadas, dando-me trancos. Para me livrar da aporrinhação, disse a ele, entre soluços, que ia contar sua maldade ao meu irmão Carlos, que era forte e ia dar uma boa pisa nele. Foi a salvação. Parece que o Arnaldo conhecia Carlos, que era calmo e calado, mas, na hora certa, sabia bater bem.
 





 
Além da diversão, ele também partilhou comigo os trabalhos que fazia para reforçar sua mesada. Com ele fiz parcerias, tanto nas oficinas do jornal “Semana”, como fazendo gaiolas de passarinhos ou ajudando no comércio de revistas. No que diz respeito a essa última parte, lembro que Carlos resolveu comercializar gibis para melhorar sua renda. Arranjara um balcão com vidraças e ali ele expunha, na sala da frente da redação do jornal, as revistas de Super-Homem, Batman, o Fantasma, Brucutu, Os sobrinhos do Capitão, Tarzan, Príncipe Submarino e outras publicações. Eu me encantava com esse trabalho porque tinha a primazia de ler, em primeira mão, todos os gibis. Foi folheando e lendo os diálogos dos quadrinhos que comecei a gostar de boas leituras e passei a desvendar os encantos dos livros da biblioteca de papai.

As revistas também eram vendidas no cinema. Eu era o encarregado dessa parte. Para isto, eu recebia de Carlos o valor do ingresso e, levando um maço de gibis, era um dos primeiros a comparecer ao Cine Ipiranga. Quando eu chegava para pagar a entrada, lá já estavam Néia, D. Rosália, sempre na primeira fila, e o menino que vendia seus queimados (balas de mel) expostos em uma cesta de vime que ele transportava no braço.


Assim que o pessoal começava a entrar no cinema, eu me aproximava e oferecia as revistas. E vendia. O freguês que se destacava era o garoto José Prata, filho de família proprietária da Fazenda Riachão, localizada na estrada Simão Dias-Pinhão. Ele usava roupas brancas, de linho, gostava de ler gibis e comprava muitos de uma só vez. Lembro-me que ficava imensamente alegre quando avistava aquele freguês. A venda era assegurada e me garantia a compra de uns “queimados” de Néia.
A revista preferida pelas garotas


A preferência das meninas era pela revista Cinderela, que mostrava histórias de amor em quadrinhos, tipo fotonovela. Mas raras vezes conseguia vender no cinema, as garotas preferiam comprar na redação do jornal.


Esporte Ilustrado e  glorioso time do Famengo:
Garcia, Pavão, Tomires,  Jadir, Dequinha, Jordão,
Joel, Rubens, Índio, Benitez e Zagalo.
Aos que gostavam do futebol, a revista certa era a do Esporte Ilustrado, apreciada nas tardes de domingo, no Bar de Abel, que ficava na Rua D. Joviniano de Carvalho, entre as lojas As Três Américas, de Cícero Guerra, e A Predileta, de Elísia Montalvão. Era lá que a turma se reunia para ouvir a transmissão dos jogos.  Abel tinha um rádio potente (marca Philips, do tamanho das atuais TVs de 20 polegadas) que colocava em uma mesa na calçada, em frente ao bar, onde a turma se reunia para ouvir as narrações, torcer, discutir e apreciar as fotos na revista Esporte Ilustrado. Foi lá que eu ouvi as transmissões de jogos em que o grande Flamengo conquistou o tricampeonato do Rio, 1953/1954/1955.
As revistas esportivas chegavam a Simão Dias com certo atraso e traziam as reportagens sobre o campeonato, mostrando na última página, em desenho tipo croqui, como aconteceram os gols. Nas páginas centrais, vinham as fotos coloridas das equipes campeãs. Eram utilizadas para ornamentarem as paredes das oficinas do jornal e das tendas de sapateiros. Com um detalhe, as do jornal só tinham as fotografias do Mengão. A razão disto: eu, Carlos, Luiz de “Seu” Izidro e o chefe tipógrafo, Luiz Santa Bárbara, torcíamos pelo rubro-negro carioca. Também pregávamos as páginas da revista “O Cruzeiro”, com moças em trajes sumários e recortes com piadas do Amigo da Onça, do famoso Péricles, e As Aparências Enganam, do cartunista Carlos Estevão. As paredes da oficina d’A Semana transformavam-se em um belo e colorido painel.

Quem não gostava daquela ideia, fechando um olho e torcendo a boca em direção aos postais do Flamengo, era o tio Sininho, que era vascaíno.

 Esses, como outros por mim já narrados, são fatos reais de nossa vida que me encantam e me dão prazer em lembrar, porque tudo era feito com muita espontaneidade e diversão...

Aracaju, 28/02/2013.

Beto Déda


quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013


 


A criatividade de ontem e de hoje.
 

Encanta-me apreciar as habilidades de meus netos no uso do tablet (uma espécie de computador portátil). O uso de tais instrumentos facilita a atividade motora das mãos das crianças e, dizem, estimulam a criatividade.

 
A lousa ou pedra de escrever dos anos 40/50.
 

O que percebo é uma grande diferença do que acontecia nos velhos tempos, lá pelo início dos anos 50. O meu “tablet” era uma pequena lousa de pedra em que, usando um lápis também de pedra, praticava caligrafia e desenhos, além de me divertir brincando de forca. A minha pedra de escrever sempre estava rachada, parecendo casco de tartaruga, o que dificultava a escrita. Mas minha professora, Ana Santa Rosa, dizia que devíamos usar a criatividade e nos estimulava a praticar a separação de sílabas, de modo a nos livrar das fissuras da lousa. Usávamos o lápis de pedra e depois de feita a escrita e conferida pela professora, tudo era apagado usando uma pequena planta transparente e rica em água, chamada popularmente de “tripa de macaco”. Assim que chegávamos à escola de Prof. Ana,  íamos até o quintal e colhíamos um molho da pequena planta limpadora. Algumas meninas usavam como apagador um vidrinho com água, diziam que era mais higiênico. Mas não faltavam aqueles que, escondidos da professora,  usavam o cuspe para a “limpeza”, o que era nojento pra caramba...

Com o progresso, surgiram as penas de escrever, acompanhadas de tinteiros. Inicialmente eram usadas por alunos mais adiantados.  E as carteiras das salas de aula tinham um local próprio para se colocar os tinteiros. Raras eram as mãos e fardas que não traziam as marcas de tintas.



A verdade é que os poucos recursos de ontem era um estímulo à criatividade. E todas as crianças procuravam inovar em brincadeiras. De um simples cabo de vassoura, fazíamos um cavalo de pau e galopávamos empolgados como estivéssemos em um fogoso mangalarga. Um arco de pneu com um pequeno arame condutor se transformava em um formidável brinquedo, rolando pelas ruas. Uma tábua, tendo rolimãs como rodas, se transformava em uma veloz Ferrari. E na oficina de papai, com uma serra, transformávamos um pedaço de madeira em um revólver para brincar de caubói, com o famoso grito de “mãos-ao-alto”.

Para angariar alguns trocados, meu irmão Carlos fazia belíssimas gaiolas de madeira e arame, com contas e outros balangandãs. Eu aproveitava os restos de madeira, fazia miniaturas de gaiolas, usando toda a criatividade para enfeitar ao máximo e, depois, vendia aos colegas do Grupo Escolar Fausto Cardoso. Os trocados serviam para comprar os queimados (balas de mel) vendidos por D. Rosália.


 
O Cartão de Cupido

Nas oficinas do jornal “A semana”, para reforçar a mesada, usava o pequeno prelo e imprimia “Cartões de Cupido” para vender aos colegas nas tardes de domingo. Os cartões eram usados pelos garotos inibidos – e eu era um deles – para abordar as meninas no passeio da Praça da Matriz. Era só entregar o cartão à garota escolhida e pedir que dobrasse o ângulo certo e devolvesse. Como bom comerciante, pensando nas próximas vendas, sempre aconselhava aos compradores sobre o óbvio: o cartão só podia ser usado uma vez, assim deveriam comprar uma boa quantidade. Vendia muito e tinha fregueses certos.
 

A criatividade era usada sem parcimônia e às vezes com um pouco de “astúcia” infantil. Narro, aqui, uma delas.
 
Cartaz do seriado A Deusa de Joba,
 com Clyde Beatty e Elaine Shepard
 Nos sábados, em nossa terra, o pensamento da garotada era ir ao Cine Ipiranga, que na época exibia o seriado A Deusa de Joba, com Clyde Betty e Elaine Shepard. Certa vez, um de nossos amigos, que morava na Praça de São João, dizia, tristonho, para mim e meu irmão Carlos, que ia perder o grande episódio do seriado porque não tinha dinheiro para pagar o ingresso. O pouco que sua mãe dispunha era para comprar feijão. Diante dessa dificuldade, unimos os pensamentos em criar uma solução mágica para o problema: conseguir o feijão, sem gastar um tostão.  Acertamos os detalhes e fomos à feira. O colega perguntava ao comerciante quanto custava um quilo de feijão e os três, ao mesmo tempo, enchiam as mãos de amostras dos grãos que não voltavam ao saco, mas sim à mochila do pretenso comprador. Depois de passarmos por diversas barracas, fazendo a indagação do preço e pegando as amostras, tínhamos a quantidade de feijão necessária. Tudo conseguido sob o olhar desinteressado dos feirantes, sem gastar os trocados que foram utilizados no ingresso do amigo ao cinema.
Dias depois soubemos que a mãe do colega reclamou da compra. A bronca era o feijão irregular, uma mistura danada, parecendo “feijão de cego”. E o pau cantou...
O fato é que o garoto e sua mãe comeram feijão misturado. Ele levou umas chineladas, mas não perdeu o episódio das aventuras de Baru e sua irmã, em a Deusa de Joba.
 
Era assim nos velhos tempos. As dificuldades estimulavam a criatividade e nos levavam a um mundo de sonhos e fantasias. Acredito que hoje, mesmo com o desenvolvimento tecnológico, surgem novos estímulos. Os garotos não perderam a criatividade e com talento não deixam de criar fantásticos mundos na procura de diversões e de soluções para seus problemas modernos.
 
É o que vejo, com meu olhar de avô coruja, observando o que fazem meus queridos netos.
 


Aracaju, 21/02/2013

Beto Déda

sábado, 16 de fevereiro de 2013



O carnaval, a seca e os foliões “filósofos” de Simão Dias.


 
 Passei esses dias de carnaval com meus filhos e netos no sítio Lago Dourado, curtindo o convívio da família e observando os efeitos da seca que maltrata o Nordeste. O triste efeito da falta de chuvas também nos atinge e transformou o nosso pequeno lago, que era um bonito cartão postal, em uma feia poça d’água estagnada..

 Acontece, porém, que os estragos da seca não aniquilaram a alegria carnavalesca e não faltaram as brincadeiras dos netos com fantasias, confetes e serpentinas, contagiando-nos e nos trazendo recordações dos carnavais de Simão Dias.

Nos dias atuais, diante do problema da seca, muitos são os que se mostram arredios aos festejos momescos. Acreditam que diante da situação climática adversa razão não existe para ativar o reino da folia. Os argumentos contra os foliões não são exclusivos do momento atual. Não é de agora que tais manifestações são ouvidas.

Mas nem todos pensam assim. Conheci e conheço muita gente que não concorda com essa restrição. Para os que gostam da folia, o carnaval é o momento certo para amenizar as vicissitudes da vida. E mesmo passando dificuldades o povo não deixa de brincar.

Dos velhos tempos em minha terra natal, guardo lembranças de tipos que marcaram sua presença pela singularidade nas brincadeiras nos carnavais.
Negão engraxando sapato e fazendo samba.

Dentre eles, os notáveis batuqueiros Negão e Tonho do Areal, ambos engraxates. Negão era um talento em batucar com a escova em sua caixa de limpar sapatos, que ficava na calçada do açougue municipal, confronte a redação do jornal “A Semana”. Tonho do Areal tinha sua caixa de engraxar perto do Bar de Valério. Ambos eram bons foliões. Com um detalhe, o Negão mancava, tinha um problema na perna e não podia sambar, seu forte era cantar e batucar. Enquanto o Tonho era um grande re-bo-la-dor e, quando o bloco passava pela Rua do Sobrado, ele cantava pra sua mulher, que se chamava Luzia, a marcha de Braguinha:

     “Anda, Luzia,
    Pega um pandeiro, vem pro carnaval
    Anda, Luzia
   Que essa tristeza lhe faz muito mal...”
 
Naquela época a situação estava difícil aqui no Nordeste e o povo vivia com a barriga amarrada ao espinhaço. Mesmo assim, nossa gente não deixou de brincar nas ruas e no clube da cidade.


Artigo de Carvalho Déda sobre
a filosofia de domingos Bina

Intrigado com aquela contradição, especialmente com as despesas do carnaval, meu pai procurou saber como era possível se comemorar um carnaval tão animado, tão sacudido, tão rebolado e tão afunilado, quando a cidade se debatia numa crise danada. E perguntava pra seus botões: como aquela gente conseguiu fazer uma festa tão porreta sem dinheiro?  

Para entender essa façanha, entrevistou o folião Domingos Bina, que na quarta-feira de cinzas estava ressacado, no oitão do Cine Brasil, acocorado, fazendo cruz na boca. O diálogo foi o seguinte, publicado na edição do jornal “A Semana”, em 18.02.1956, em artigo sob o pseudônimo de Lynce: “A Filosofia de Domingos Bina”:

 
 – Como se faz carnaval sem dinheiro, “seu” Domingos?

O “filósofo” respondeu sem pestanejar: – Oxente! É só pegá um pedaço de papelão, fazê dele um funil, chamá Negão e Alfredo Engraxate, metê a cara na rua e a turma acompanha. Todo mundo sai atrás do funil...

- Mas “seu” Domingos, (insisti) sem correr nada no funil?

Com um riso malandro, o filósofo da bandurra explicou: - Basta oiá pro funil! Todo mundo já ta avinhado!...
 
E a última pergunta: - Mas "seu" Domingos, bom carnaval sem dinheiro? E a religião como é?
 
O "filósofo" não titubeou: - Oxente! Depois de feito, Deus dá um jeito!...

 
Outro inesquecível folião era o Pedro Retraído, sobrenome que recebera por ser um homem reservado, que mais escutava que falava. Era um senhor de meia idade, galego, alto, magro, com um bigodinho aprumado, olhos meio caídos, fala mansa e de poucas palavras. Sóbrio, sem ser tímido, animava os carnavais da cidade transfigurando-se, ao mesmo tempo, em dois personagens. Ele traçava uma linha divisória em seu próprio corpo, do alto da cabeça, passando pela metade do nariz indo até a virilha. De um lado, o direito, era ele próprio, com sua feição normal e o olhar perdido no horizonte. Cobria essa parte do corpo com paletó, camisa, calça e um sapato. Do outro lado, o esquerdo, era o inverso: cortava o cabelo rente com máquina zero até a linha divisória, raspava uma sobrancelha, parte do bigode e pintava essa face do rosto com uma espécie de cera branca. Nesse lado do corpo mostrava uma camiseta sem manga, calção parecendo cueca samba canção, deixava a perna comprida nua e usava uma chinela no pé. Trazia pendurado na cintura um pinico com doce de leite, imitando cocô de criança. E na boca, do lado esquerdo, soprava um apito chamado “língua de sogra”.  
 
Com seu lado sério intocado, sem uma única palavra, lá ia ele pelas ruas da cidade com seu inconfundível andar de longas pernas. Parava em cada esquina e, pelo lado esquerdo de sua boca, soprava o apito língua de sogra, estirando-o em direção aos curiosos.

Sem querer, o Retraído filosofava e encarnava a simbologia da dualidade, da dúvida e da contradição existentes na humanidade. Em sua fantasia, ele representava a tristeza e a alegria, o feio e o bonito, o bem e o mal, a pobreza e a riqueza, a verdade e a falsidade, a luz e as trevas, a seriedade e a folgança. Sua  exposição esbanjava filosofia. 
 
Não me resta dúvida de que o inesquecível Pedro Retraído era rico em sabedoria e fazia de seu humor carnavalesco o contraponto de sua seriedade. Sem querer, ele expressava o pensamento do grande criador de Carlitos, o imortal Charles Chaplin, que dizia ao comentar sobre o humorismo e a seriedade exagerada:
 
O humorismo alivia-nos das vicissitudes da vida, ativando o nosso senso de proporção e revelando-nos que a seriedade exagerada tende ao absurdo.

 

São lições de vida de inesquecíveis foliões  e “filósofos” de minha terra.

Aracaju, 13/02/2013

Beto Déda

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013


O magro e a “magrela”.



Há poucos dias estava tentando ensinar minha querida neta Marina a pedalar sua bicicleta. Notei sua dificuldade em se equilibrar, por não alcançar os pedais. A sua bicicleta era grande, própria para adultos. Pensei em presenteá-la com uma menor. Aliás, esse era o presente que sempre tive alegria em oferecer aos meus sobrinhos e filhos. E o gosto por esse tipo de presente tem uma razão especial, que passo a contar agora.


Eu, o magro, com a farda do
Grupo Escolar Fausto Cardoso 
Sempre fui magro, mas na infância minha magreza era maior. Ao olhar pra mim, sem camisa, facilmente dava para visualizar os ossos e contar as costelas. Essa falta de musculatura e o realce da aparência óssea era motivo de riso dos colegas. Muitos se aproveitavam de minha aparência física  para me apelidarem de “esqueleto humano”. Outros, olhando-me de cima a baixo, diziam que – com aquele corpo esquelético – a minha vida seria curta. A verdade é que ao ouvir tais comentários meus protestos não faltavam, chegando até as vias de fato, embora muitas vezes saísse em desvantagem por falta de condições físicas.

De todos os comentários, o que mais se fixou em minha memória foi o dia que, passando pela Rua do Coité, uma senhora me chamou e, apalpando minhas costas e mostrando as partes salientes dos ossos da pá, olhou para as amigas e disse:

- Tão magro, olhem as espáduas dele, são tão salientes que parecem espingardas. Ou serão asas nascendo? Para onde vai com essas espingardas, Beto? Vai voar?
E as risadas me atordoaram. Não briguei, nada respondi e não tive raiva da boa senhora. Fiquei triste, muito triste mesmo, por ser tão magro, por causar aquela impressão seguida do comentário impensado de uma pessoa que sempre reverenciei e que não deixei de continuar admirando...

Meu porte físico também me causou outros constrangimentos, dentre eles foi não ter uma bicicleta que, por coincidência, os jovens hoje chamam de “magrela”.

Efíngie de Getúlio Vargas
Aprendi a pedalar com meu irmão Carlos. Naquela época, em Simão Dias, as pessoas alugavam as bicicletas que eram expostas na Rua do Coité, em frente ao prédio do Lactário, que hoje é o Fórum Gervásio Prata. Cada cinco minutos de aluguel custava “quinhentos-réis” ou cinquenta centavos, moeda cunhada com a efígie Getúlio Vargas.

Apesar de meu físico, gostava muito de bicicletas e fiz o possível para aprender a pedalar. Assim que conseguia um trocado, lá estava eu, magricela, andando na “magrela” alugada.

Quando passei a dominar o pedal e o guidão, fui até a redação do jornal “A Semana” e pedi ao meu querido pai que comprasse uma bicicleta pra mim. Ele me olhou com cuidado, pensou e respondeu constrangido:
- Não posso lhe atender e isso é para seu bem. Você não soube que recentemente seu colega Júlio, filho de Pierre, caiu de uma bicicleta e quebrou o braço?  E note que ele é um garoto forte. Pois bem, essa não é uma boa ideia pra você, que é magrinho...


Argumentei que já sabia andar, que tinha mais equilíbrio que o Júlio e que nada ia acontecer. Mas não fui persuasivo. Meu físico não ajudara e a verdade é que meu pedido não foi feito na ocasião oportuna.
O fato é que, mesmo sem a aprovação de meus pais, continuei pedalando as bicicletas alugadas.

Meses depois, quando chegou setembro e os estudantes do grupo escolar Fausto Cardoso começaram a ensaiar para o desfile do dia da pátria, foi formado um grupo de ciclistas (alguns alunos que tinham a felicidade de possuírem bicicletas) que deveriam ir à frente do desfile.  Sabendo disso eu não me contive. Tinha que arranjar uma bicicleta para desfilar. Alugar não era possível, por ser demais oneroso devido a quantidade de horas. Então resolvi apelar para minha querida tia Lucila.

Eu sabia que o Zé Carlos, meu primo, tinha uma bicicleta. Ele estava estudando em Aracaju. Fui até a casa de tio Sininho, procurei tia Lucila e, com a cabeça baixa, esfregando os dedos, fiz o pedido:

Tia Lucila
-Tia Lucila, a senhora poderia me emprestar a bicicleta de Zé Carlos para eu desfilar no dia 7 de setembro? Eu tenho cuidado e logo depois do desfile eu devolvo sem um arranhão...
O sorriso carinhoso estampado na face de tia Lucila nunca saiu de minha mente. Com uma alegria imensa, consegui a bicicleta.

No dia da independência eu desfilei garboso, envergando a farda do grupo escolar, portando uma faixa verde/amarela que me destacava como ciclista. E pedalando a “magrela” do primo Zé Carlos, eu acenei alegre e agradecido para tia Lucila. Foi um dia inesquecível...

Aracaju, 04/02/2013

Beto Déda

quinta-feira, 31 de janeiro de 2013


 Outras histórias do saudoso colega compadre.

 
Minhas recordações da última semana foram do amigo de infância conhecido como Compadre. Ele também foi meu colega de trabalho no Banco do Nordeste do Brasil, o BNB, tanto na Agência de Simão Dias, como em Aracaju, onde aconteceram outros não menos curiosos fatos que aqui relato.


Anúncio no jornal  "A Semana" da Escola de
 Datilografia que o Compadre não frequentou.
Contrariando a característica de bancário, o Compadre não gostava de redigir e nem sabia datilografar. Mesmo assim era ele quem cuidava de todas as correspondências da Agência e dos malotes recebidos e expedidos para a  Direção Geral. Certa vez deparei-me com ele “catando milho” em uma máquina de datilografia, com o nariz quase raspando o teclado, devido a sua miopia. Indaguei a razão daquela dificuldade em tentar datilografar. Disse-me que estava atendendo, disciplinadamente, a uma determinação do gerente que, mesmo sabendo de sua falta de habilidade – pois não tinha frequentado a Escola de Datilografia do Prof. Geonilde –  determinara que ele datilografasse um texto. Naquele dia o compadre não cuidou dos malotes, seu único trabalho foi tentar cumprir a determinação do impertinente administrador. Só conseguiu no final do expediente da tarde. E o texto datilografado foi exibido como um troféu pelo implicante gerente.
...

Na agência de nossa terra, Compadre nos impressionava com suas brincadeiras e demonstrações inusitadas. Nas tardes frias do inverno, durante o expediente interno, ele chegava para a turma e dizia:

- Agora é o momento certo para lavar minhas entranhas...

Então ele bebia quase um litro de água, fazia um movimento com a barriga, debruçava-se na janela e regurgitava todo o líquido que tinha solvido. E com seu olhar engraçado exclamava: - Obá!...
Depois, demonstrava sua força, parando as compridas hélices dos potentes ventiladores usando seus fortes e grossos dedos.

...


O Compadre pugilista parecia
com o ator Mickey Rooney
(Copyright :© DR)
Dizia ele que fora lutador de boxe no Rio de Janeiro. Contava que inicialmente tinha sido um sparring e seu nariz fora quebrado para melhor desempenhar o esporte. Confirmava-se, assim, sua fama de menino bom de murro, fato que já narrei nesse blog, em 25.10.2012, quando ele nocauteou um adversário em uma briga em partida de futebol na Praça São João.

Pois bem. Em uma tarde, ao ouvir alguém duvidar de sua atuação como pugilista, ele resolveu fazer uma demonstração. Para isto, me fez um esquisito apelo:

- Compadre Beto, me ajude a demonstrar a verdade pra esse infiel. Você pode dar um murro em meu nariz? Vamos, compadre, mande o soco!

Diante da minha negativa, ele mesmo aplicou um forte murro no próprio nariz, que ficou bem vermelho. Ao perceber os risos que a cena causou, ele então esfregou o nariz para um lado e para o outro e esclareceu:

- Ficou um pouco vermelho por falta de exercício.  É coisa normal em qualquer pugilista...

E saiu gargalhando com seu jeito inimitável.
...

Um dia Compadre chegou ofegante a minha mesa de trabalho. Sua dificuldade em respirar não fora ocasionada pela subida brusca da escada íngreme, de estreitos degraus, que dava acesso ao setor rural da agência do BNB em Simão Dias.  Sua perturbação tinha sido ocasionada por um acidente que tivera com um cão de propriedade do juiz de direito da cidade. Com os olhos arregalados ele contou-me o acontecido, mais ou menos assim:  

- Compadre Beto, eu vinha quase em frente ao Açougue quando o diabo do cachorro do Juiz me atacou. Quando ele veio latindo em minha direção, com a bocarra aberta para me morder, eu enfiei a mão na boca dele, agarrei sua língua e puxei com força. Quase saiu todo o esôfago do danado. Aí soltei e ele correu com o grunhindo de dor em direção à casa do dono. Não sei se sobrevive. Dizem que o Juiz vai usar a caneta contra mim, diante do que fiz ao seu feroz animal de estimação. Será verdade?

Felizmente, diante inusitado revide sofrido pelo inquieto animal, nada aconteceu ao grande Compadre.
...

Já aposentado, ele morava em Aracaju. Em uma noite chegou seu filho em casa, assustado, contando que fora agredido por um malandro que lhe roubara o relógio.  O Compadre pegou o carro e saiu pelo bairro em procura do larápio.  Chegou a um barzinho e lá estava o manhoso. Tendo o filho confirmado a autor do crime, ele não titubeou: apontou o revólver para o meliante, o fez entrar no carro e o levou para delegacia. No caminho, após amansá-lo, olhando nos olhos do ladrão e o cutucando com o cano da arma, afirmou:

-Olha aqui, seu fio do cabrunco, se eu souber que você apareceu nesta região ou perturbou meu filho, eu vou atrás de você onde estiver e lhe pego de jeito, seu merda. O cuidado agora vai ser seu, vagabundo!

Entregou o bandido à polícia e nunca mais o malandro voltou importunar no seu bairro.

Assim era o meu saudoso e bom amigo Compadre: alegre, irreverente, bondoso, brincalhão, mas que nunca levou desaforo pra casa.

Aracaju, 30/01/2013

Beto Déda

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013


As curiosas aventuras de um colega inesquecível.

 

Em minhas recordações existe um amigo de infância que tem lugar de destaque. Cultivava as amizades com sua bondade e boa fé. A todos ele chamava de compadre, razão pela qual ele passou a ser conhecido por esse apelido. Era forte, baixo, pele alva, sofria de uma ligeira miopia, cabeça grande com cabelos cheios e lisos. Expandia coragem, tinha o pavio meio curto e não levava desaforo pra casa. Dizia meu primo Zé Carvalho que tanto ele como suas travessuras pareciam com as do jovem artista de cinema chamado Mickey Rooney. Além de tudo foi personagem de casos curiosos que merecem ser lembrados. E aqui recordo alguns deles.

O grupo escolar de Simão Dias estava um reboliço naquele início de setembro dos anos cinquenta. Com maior intensidade do que em dias comuns, as professoras exigiam dos alunos maior dedicação à aprendizagem dos fatos históricos da pátria.


O Prédio do Grupo Escolar Fausto Cardoso
A turma do primeiro ano ficava no salão do meio, cujas janelas davam para a praça da matriz, de onde os alunos tinham a visão da igreja e do cata-vento que bombeava água de um poço.  Alguns meninos daquela sala se destacavam pelas travessuras que aprontavam no dia-a-dia. Um deles era o colega Compadre.  Tal e qual a gurizada da época, ele costumava falar alguns palavrões, dentre os quais sobressaía a expressão de uso comum entre os sergipanos:  cabrunco!” e “ô fio do cabrunco!” Quando se queria expressar espanto ou dimensionar um grande ou grave acontecido falava-se : -“Ô cabrunco! Também era a palavra de ordem para demonstrar qualquer aborrecimento e xingar uma pessoa: “Fulano de tal, aquele “fio do cabrunco...!”.

A professora da classe era Dona Olda, dedicada e prestimosa mestra, querida por todos os alunos. Seu método de ensino era infalível. Paciente com os pupilos, sempre tentava auxiliar nas dificuldades. Quando notava um vacilo, ela prontamente dava uma ajuda, iniciando a resposta e deixando sempre a última palavra ou sílaba para ser dita pelo aluno. Assim, se ela perguntava aos estudantes quem era o Presidente do Brasil e notava qualquer demora na resposta, então a ajuda era certa: “O Presidente do Brasil é Getúlio VAR...” e em uma só voz os estudantes gritavam a última sílaba: “GAS”.

Naquele dia a Prof. Olda estava iniciando a aula com uma revisão dos principais fatos de nossa História. E começou perguntando à classe: “Em que ano aconteceu o descobrimento do Brasil?” Houve um ligeiro silêncio dos mais aplicados, porque a classe ainda estava no sussurro inicial dos alunos retardados se arrumando nas carteiras. Ela então deu a ajuda: “O Brasil foi descoberto no ano de um mil e QUINHEN...  E ouviu-se a resposta uníssona completando a última sílaba :  TOS”.
Pedro Álvares Ca...

Enquanto isso, sentado na última fila de carteiras, no fundo da sala, alheio aos ensinamentos, nosso Compadre discutia animadamente com outro amigo. Percebendo a distração, a Prof. Olda dirigiu-se a ele, indagando: “Quem descobriu o Brasil?” Nada de resposta. Tão envolvido na troca de figurinhas, o colega não percebeu a pergunta, provocando na bondosa professora sua reação natural de ajuda, enfatizando: “Quem descobriu o Brasil foi Pedro Álvares CA...” Nada de resposta. Advertido pelo vizinho e meio atordoado, Compadre ouviu apenas a Professora indagar: “Foi CA...” e a resposta veio sem demora e impensada: “...BRUNCO, foi o CABRUNCO!” E a risada explodiu na classe.

Percebendo a mancada, ele apressou-se em pedir mil desculpas. Depois de ouvir uma cuidadosa reprimenda da querida professora, ele baixou a cabeça demonstrando arrependimento e, com a humildade que sempre o caracterizou, atendeu a recomendação de copiar dez vezes um texto sobre a inconveniência de dizer palavrões.
 

Em uma manhã, lá pelas nove horas, a classe foi perturbada pelo inusitado som de um motor. Curioso, o Compadre se aproximou da janela de onde se via a torre da igreja e o cata-vento. Olhou para cima e avistou um pequeno avião. Imediatamente ouviu-se seu estridente grito:
Um Teco-teco no campo de aviação

- Turma, um teco-teco vai pousar no campo! Vamos ver? Eu estou indo..

 Para evitar a debandada, a professora fechou a porta da sala e convocou todos a tomarem seus lugares. Nada continha a curiosidade da meninada e o Compadre liderou a turma. A janela foi a saída procurada. Foi o primeiro a pular, seguido pela maioria, todos se dirigindo ao campo de aviação que ficava lá pelas bandas do Bonfim de baixo. Ver de perto o aeroplano foi o ponto alto daquela manhã e serviu de comentário na cidade durante toda a semana. De volta ao Grupo Escolar, a professora impôs um castigo a todos: redigir um texto sobre o avião pousando na cidade. Dizem que o colega só redigiu cinco linhas. Redigi não era a praia dele...

 

Nas tardes de domingo, depois da matinê no cine Ipiranga, a meninada ia à praça da matriz, com roupa domingueira. Para impressionar, os garotos besuntavam os cabelos com brilhantina ou óleo “Glostora”, uma novidade da loja “Três Américas”, de Seu Cícero Guerra. Admirado com o brilho dos cabelos do meu primo Zé, o colega não se conteve e perguntou o que ele usara para o cabelo ficar certinho e brilhante daquela forma. Brincalhão e presepeiro, o Zé não perdeu a oportunidade e foi logo ensinando:
 
O óleo lustra móveis
- O famoso ‘Óleo de Peroba’, meu compadre. Depois que passei a usar esse óleo as meninas estão dando sopa. É um sucesso! Use e você vai se dar bem.

No domingo seguinte, lá estava o amigo risonho com o cabelo arrumado, brilhante e com o inconfundível cheiro do óleo usado para polir móveis. Somente depois é que ele percebeu a brincadeira e ficou picado da vida, arrebentando o conhecido linguajar para o desconfiado Zé: - Esse cara é um gozador do cabrunco!

 

São lembranças de um querido e saudoso amigo que foi companheiro de muitas brincadeiras de infância e que ao recordá-las nos alegra e ao mesmo tempo marejam nossos olhos com gotas de saudade...

Aracaju, 22/01/2013.

Beto Déda