As
burcas, o jogo de bolinhas de gude e a criatividade nas brincadeiras de
antigamente.
Nesta semana, minhas lembranças se
voltaram mais uma vez para o tempo de criança, quando eu brincava na Praça de
São João, em Simão Dias.
E o gatilho de minha memória foi
acionado quando ouvi, em um documentário que passava na televisão, a palavra
“BURCA”, que é uma veste feminina usada pelas mulheres mulçumanas em alguns
países islâmicos.
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Burca afegã (Google) |
Em minha cidade, entre a meninada do
meu tempo, a palavra “BURCA” tinha outro significado. Explico: nos jogos de
bola de gude, ou bola de vidro, a “BURCA” era uma covinha que se fazia no chão,
girando o calcanhar.
O jogo era demarcado em um retângulo e
no centro, em linha reta, ficavam 3 burcas (covinhas), cavadas com o calcanhar,
a uma distância de um passo largo de uma para outra.
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Demarcação do jogo de bola de gude, em Simão Dias (Foto e anotações de Beto Déda) |
O jogo de bola de gude, também
conhecido como “marraide”, consistia em colocar cada bolinha nas
três burcas, ida e volta. E no decorrer do jogo, à medida que o jogador
progredia, cada cova tinha nome próprio: primeira, segunda,
terceira, segundo papas e papones. Quando
se atingia papones, aí o jogador que “tecasse” a bola do
adversário, passaria a ser dono da bola, ou seja, “matava” o adversário,
tirando-o do jogo e se apropriando da bolinha de gude.
O jogo começava com os jogadores
lançando a bola em direção à convinha que ficava no extremo da fileira. O
jogador que atirasse a bola mais próximo da cova era quem iniciava o jogo e
tentava colocar a bola na primeira burca; se conseguisse, poderia prosseguir
tentando atingir a segunda, a terceira e assim por diante. Para se aproximar da
burca, poderia optar por tecar a bola do adversário, mas perderia a vez quando,
com o toque, as bolinhas não ficassem separadas por uma distância mínima de 3
palmos.
A linha formando o retângulo, que
circunscrevia as três covinhas, limitava o local que as bolas de gude poderiam
ser roladas. Se ultrapasse a linha, o jogador perdia o jogo. Mas tinha uma
ressalva: quando se atingia o “papones”, o jogador poderia tentar
mais uma vez colocar a bola na covinha do meio, chamada de “recolhido”.
Se conseguisse, ele teria licença para
ultrapassar as linhas do retângulo. Bons jogadores sempre atingiam a posição “recolhido” e
podiam travar longa disputa em locais fora dos limites das burcas.
A garotada que morava na Praça de São
João e vizinhança se divertia jogando bola de gude e de muitas outras
competições. Agora mesmo, lembro de muitos companheiros de brincadeiras. Lá
estavam, uns com maior frequência que outros: eu, meu irmão Carlos
Eugênio, Hamilton de Chico Ferreira, Júlio de Seu Pierre, Hélio de Seu
Otávio Muganga, Simão de Seu Antônio Gomes, Manuel de dona Tude, Cabral de
Polito, Luciano de Seu Terto, Serafim (o mais alto de todos, apelidado
de espanador da Lua), Tonho e João de Seu Manequinha, Miraldo de dona
Zifinha, Binho de Zé Neves, Lero de dona Lauzina, Cícero(cadê o avião?),
Zelito da Ponta da Asa, João de Mané Zabé, Pneu da Carne do Sol, Dalmo de
Cipriano, Sorrindo da Pipoca, Zé do Bolo, Rubens de João Cândido, Adelmo e
Messias de Seu João Fontes, e os primos Wellington de tia Vina, Heraldo
de tio Paulo e Armando de tio João Déda. Além de muitos outros que frequentavam
aquela praça, mas que no momento escapam de minha memória.
Naquele tempo, a criatividade na
procura de diversão se expandia na cabeça de cada um de nós: se jogava peladas
com bolas de meia ou de borracha, de bexiga de boi ou uma pelota velha, que
tinha um rasgo que escondia um comprido pito; as penas de galinha serviam para
fazer petecas; rolar um aro de pneu com um arame como guia, era como se
dirigisse um possante carro; as castanhas de caju eram usadas em disputa para
acertá-las nos canos de escoamento de água dos platibandas das casas; as capas
dos maços de cigarro e as estampas do sabonete Eucalol eram negociadas
e serviam para as apostas em diversas competições; uma tanajura enfiada num
palito se transformava em um helicóptero; com a argila do Tanque Novo se fazia
balas para os badogues (estilingues), e também serviam de modelo para fazer
máscaras (caretas) que eram usadas no carnaval; gravetos de mulungu,
taboca e palitos de palha de coqueiros se transformavam em gaiolas e
armadilhas para pegar pássaros e mocós. As tábuas do caixão de sabão
pintado eram disputadas para se fazer pequenos caminhões e revólveres para se
brincar de caubói. Também fazíamos cinema - usando caixotes, uma lâmpada com
água e uma vela - para transmitir os quadros de celulose, descartados dos
filmes e que nos eram dados pelo pessoal encarregado dos projetores dos cinemas
Ipiranga e Brasil.
De igual modo, não posso esquecer
que, também com tábuas de caixotes de sabão, fazíamos pequenas
mesas de sinuca, cobertas com pano verde, tabelas sobrepostas com pedaços
de borracha de câmara de ar, tacos feitos de cabos de vassouras e as bolinhas
de gude, coloridas, compradas no Armarinho de Lélia e Inês Carvalho.
O certo é que eram inúmeras as formas
de brincar e não faltavam ideias bacanas.
Não tínhamos a modernidade e o
progresso de hoje, não contávamos com televisão, internet ou celular, mesmo
assim - entre nós - ampliava-se a criatividade!
Estas simples lembranças estão em um
pequeno baú, guardado na mente de quem está prestes a completar oitenta e duas
primaveras. Esta caixinha de recordações foi reaberta ao ouvirmos a palavra que,
alhures, tem o significado de uma roupa que esconde a beleza da mulher afegã.
E para concluir, transmito meu abraço
para os companheiros das brincadeiras dos bons e saudosos tempos de
criança.
Aracaju,
16/05/2023
Beto
Déda
Muito bom! Fantástica memória,Tio Beto. Infelizmente, o celular e a internet afastam de nossas crianças a possibilidade, salutar e pedagógica, do ócio criativo e produtivo.
ResponderExcluirObrigado, querido(a) sobrinho(a). Lendo este texto, meu filho Bruno me assegurou que ensinará essas brincadeiras ao meu neto que está por vir. Adorei a ideia.
ExcluirMemórias que enriquecem meu dia!! Te amo!
ResponderExcluirEu também te amo! Um abraço e que Deus te abençoe!
ExcluirFantástica memória Tio Beto. Belo texto.
ResponderExcluirObrigado querida(o) sobrinho(a). Como dizia minha querida irmã Nancy, quando lia meus textos: "Recordar é viver".
ExcluirBeto, mais uma vez você nos proporciona uma viagem sensacional aos veloz tempos. Competência, seriedade e com uma memória de fazer inveja, agradeço a oportunidade de rever” velhos amigos e companheiros da nossa infância! Parabéns!
ResponderExcluirCaro amigo: fico imensamente feliz em saber que o meu texto despertou lembranças dos bons tempos em companheiros de infância. Receba meu abraço...
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