segunda-feira, 13 de novembro de 2023

“Avião”, um personagem dos velhos tempos de minha terra.

 

 

Em minha oficina de armengues, no Lago Dourado, costumo ligar o rádio em uma estação que reproduz músicas antigas e, ontem, ouvi uma velha canção de Anísio Silva que me despertou lembranças de um personagem popular que viveu em Simão Dias, lá pelos anos 60. Era conhecido pelo apelido: “Avião”.

 

Conto para você quem foi esse interessante personagem.

 

Precisamente no ano de 1964, eu regressei à minha terra, depois de concluir o terceiro ano do curso científico no Colégio Estadual Duque de Caxias, em Salvador (Ba), e voltei a ser repórter do jornal A Semana, no qual também, vez por outra, me atrevia a escrever uma crônica, usando o pseudônimo Berto.

 

Naquela época, em encontros com jovens colegas, notei que um senhor meio louco e pedinte, com cerca de 60 anos de idade, conhecido na cidade pelo apelido de “Avião”, era sempre mencionado pelos jovens. E as frases e o vocabulário desconexos usados pelo velho maluco eram repetidos pela garotada. Lembro-me agora do termo "consistir", que para ele significava flertar, namorar. Assim é que os jovens falavam quando alguém começava um namoro ou flerte: "Fulana está 'consistindo' com sicrano". 

 

Pois bem, naquele tempo eu tinha lido o livro "Dom Quixote de La Mancha", de Cervantes, e notei que o velho “Avião” era alto, magro, barba rala, sempre usando um bastão, perambulando pelas ruas de Simão Dias, parecendo os desenhos de Gustavo Doré, que ilustrava o Cavaleiro de Triste Figura.

         

Avião no bar da Ponta da Asa (Traços da lembrança de Beto Déda

Foi em consequência dessa fantasiosa semelhança que resolvi conhecer melhor aquele andarilho que impressionava os jovens simãodienses. Procurei entrevistá-lo, para escrever um texto e publicar no jornal A Semana. Pensado e feito. Na edição de 18-07-1964 daquele jornal, tracei o perfil do velho “Avião” na seção "Um personagem, uma história".

 

Sobre esse texto, minha memória guarda com detalhes o encontro que tive com aquele personagem. Aconteceu em um bar na Ponta da Asa, onde funcionava um melhor cabaré da cidade, quase no final da Rua do Mulungu. Era início de noite e o baile do cabaré ainda não começara. Avião estava sentado em um banco, batendo cadenciadamente seu bastão, com o olhar fixo para o alto, enquanto o rádio do bar tocava, coincidentemente, o bolero “Tudo Foi Ilusão”, de Laert Santos e Arcilino Tavares, na voz de Anísio Silva, gravado em 1956.

 

Ao me sentar ao seu lado, ele imediatamente disse-me que estava com uma ligeira dor de barriga e pediu que eu pagasse uma dose de aguardente “Zinebra Guichard” que, naquela época, diziam ser muito boa para o alegado incômodo. Percebi que a tal dor era apenas um pretexto. Mesmo assim, pedi duas doses: uma pra ele e outra pra mim.  Enquanto conversávamos, ele bebeu em pausados goles, saboreando lentamente o gosto apurado da cachaça. Foi uma conversa pouco elucidativa para se conhecer a história do interessante velho. Ele não dizia coisa com coisa. Perguntei o seu nome e ele deu de ombros. Não lembrava. Esclareceu que o chamavam de “Avião”, mas esse era o apelido de seu cavalo, um pangaré magro que morreu atropelado na Rua do Alambique, próximo do terreno de Antônio Fundão e a casa de Mané de Zabé. Depois, talvez pelo efeito da aguardente, começou a cantar modinhas antigas, entre sorrisos e soluços. Parecia emocionado, voltou a batucar com o cajado no chão e bloqueou as velhas lembranças. Naquele momento, senti que era o instante de encerramos a entrevista.

 

Lembro-me, muito bem, que uma frequentadora do Cabaré, conhecida como Maria Paciência, estava encostada ao balcão, acompanhando a entrevista e percebendo o insucesso de minhas indagações, fez um sinal me informando que queria falar comigo. 

 

A bondosa atenção de Maria Paciência, que sempre fez jus ao seu segundo nome, foi para mim um privilégio. Aguardou que terminasse a malograda entrevista e, então, contou-me que certa noite tivera contato com um sertanejo que reconheceu “Avião”. O moço disse-lhe que o velho era lavrador e morava em um sítio lá para os lados de Bom Conselho, mas que ficou tantã da cabeça quando tomou conhecimento de que a sua amada mulher o tinha traído e fugido com um aventureiro que passara pela região. Inconformado com sua sorte e envergonhado, largou tudo, pegou seu cavalo e desapareceu do local. Perdeu a memória e o juízo, andou perambulando e veio parar em Simão Dias.

 

Com as informações adicionais de Paciência, escrevi o texto, que reproduzo abaixo. 

 

 

,
Artigo escrito por Beto Déda e publicado no jornal "A Semana", edição de 18/07/1964, fl.04.

Devo esclarecer que, pouco tempo depois da publicação do artigo, soube que o estranho e simpático “Avião” desapareceu da cidade, surgindo a notícia de que, tal qual seu pangaré, fora vítima de um atropelamento, passando desta para outra dimensão. 

 

Mas, como todos os fatos são motivos de longas discursões em cidades do interior, o destino final de “Avião” motivou controvérsias. Meu amigo Joaquim Vitorino, por exemplo, divergia do referido atropelamento, e afirmava que o velho voltou para os arredores de Bom Conselho, recuperou a memória e conquistou outra mulher. Que seja! Até hoje, torço que tenha ocorrido a versão de Vitorino. 

 

Por fim, para não esquecer os velhos tempos da Ponta da Asa, também é bom ouvir o bolero de Anísio Silva, música muito tocada naquele ambiente.




O bolero "Tudo Foi ilusão" tocado na Ponta da Asa 






Aracaju, 12/11/2023
BETO DÉDA


10 comentários:

  1. Mais um causo narrado com a maestria e encanto de sempre, Viva Tio Beto !!!!

    ResponderExcluir
  2. Mais uma lembrança maravilhosa, tio Beto. E agora, harmoniosamente embalada por belo bolero, que acabei de ouvir. Parabéns! Ficamos ansiosamente aguardando a próxima publicação.
    Denisson Déda.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Olá, bom sobrinho Denisson, meu abraço para você, minha querida irmã e todos da amada família.

      Excluir
  3. Amo essa histórias! Muitas recordações 👍👍👍❤️

    ResponderExcluir
  4. Um deleite ouvir suas histórias meu amado pai!

    ResponderExcluir
  5. Parabéns, prezado Beto Déda, por resgatar acontecimentos semelhantes ao que vivi, no meu Aracati. Frequentei meu Ponta da Asa, da minha cidade. Beleza de texto! Abraços

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Um abraço pra você também, meu caro José Nilton. Simão Dias e Aracati tem muitas lembranças semelhantes, que costumamos relembrar. Sempre acompanho com interesse seus textos sobre sua amada cidade..

      Excluir