O
aguadeiro, o rezador e a Praça dos Três Poderes em Simão Dias.
Desde
criança sou um impertinente perguntador, mas não sou um fofoqueiro. Minha
curiosidade é sadia, com pretensão de conhecer os detalhes daquilo que me
interessa.
Dessa
forma, quando um fato me deixa dúvida, nunca tenho acanhamento de fazer
perguntas. Isto favoreceu o desempenho de minha memória, guardando
acontecimentos dos bons tempos de minha cidade. Mas não guardo só para mim os
fatos interessantes que estão guardados em minha cachola. Gosto de repassá-los
para os amigos que tem tempo e paciência para meus longos textos.
No correr
desta semana relembrei-me do tempo que nossa cidade não contava com água
encanada, e o fornecimento do precioso líquido era realizado por aguadeiros,
que realizavam o transporte, em barris ou latas de 20 litros, no lombo de
jumentos. Nas residências existiam os porrões (grandes potes de barro),
utilizados para armazenar a água proveniente de açudes localizados na periferia
da cidade.
Conheci
alguns aguadeiros e deles retive algumas histórias. Narro agora um causo de um
senhor moreno, altura média, magro, olhos miúdos, um bigode alinhado e que
usava um colar de búzios no pescoço, dizendo ser sua proteção contra os "maluficios".
Era o aguadeiro "Bigodinho”, que diziam ser muito esperto.
Seu
trabalho era transportar água da velha represa do Bairro Areal para as
residências localizadas no entorno da antiga Rua da Feira, a atual Avenida Cel.
Loiola. Sua tropa de transporte era composta por três jegues; o que andava na
frente era chamado de "Chefim", enfeitado com fitas coloridas
e com guizos em volta do cabresto, produzindo um som característico para guiar
os outros animais.
O Bigodinho dizia-se
crente de rezas benfazejas e sempre procurava o Mestre Zinho, conhecido
na cidade como um confiável rezador e vidente, para lhe tirar mal olhado e
benzer o colar de búzios.
Certa vez,
o aguadeiro foi à casa do Mestre Zinho e, depois de ser benzido, ouviu do
rezador uma advertência: Cuidado com suas façanhas, noto
nuvens perigosas sobre sua cabeça...
Ao
pronunciar o termo façanhas, o velho vidente se
referia aos rumores de que o aguadeiro tinha o costume de se apropriar
indevidamente de galináceos, invadindo quintais alheios.
Pois foi
justamente o que aconteceu poucos dias depois. Os mexericos no meio dos
aguadeiros era de que, naquela noite, o Bigodinho resolveu invadir um
galinheiro na estrada do Areal. Pegou um gordo peru de um agricultor, montou em
seu jegue e, quando saía, ouviu o disparo de espingarda tipo “pica-pau”. Então,
levantando o peru com a mão direita, atiçou a disparada e gritou a todos
pulmões: - Ceva outro desse, seu mão de vaca, que eu volto para pegar! Em
resposta, novos tiros foram disparados, mas não o atingiram.
Dias
depois, certamente lembrando-se da advertência do benzedor, foi à sua procura
para nova reza e mais uma vez reativar a força de seu cordão de búzios.
A nova
benzedura foi demorada, com muitos bocejos do rezador. O abrir involuntário de
boca indica a sobrecarga de males que sombreiam o benzido. Então,
ao terminar a reza, enquanto recolhia o galho de arruda, o Mestre Zinho olhou
com firmeza para o aguadeiro e disse que ele tomasse todos os cuidados, isto
porque, no trabalho de descarrego, pressentiu espectros do mal rondando-lhe,
estampando um futuro penoso na Praça dos Três Poderes.
Sobre o
nome desse logradouro, vale uma explicação. A antiga Praça de São João, ou
Parque José Zacarias de Carvalho, hoje denominada Praça José Barreto, também
era apelidada pelos populares como “Praça dos Três Poderes”, isto porque
ali estavam os prédios de três importantes instituições públicas: o velho
quartel de Polícia (no local que hoje é o Memorial da Cidade); o antigo
Hospital Bom Jesus (parece-me, não tenho certeza, que atualmente o local está
abandonado); e o Cemitério São João Batista. Dessa forma, os populares d’antanho
justificavam o novo nome, esclarecendo que, em caso de briga violenta,
certamente os contendores iriam parar em um dos tais poderes existentes
naquela praça: cadeia, hospital ou cemitério. Daí o sentido da nova
advertência do Mestre Zinho.
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À direita: o Quartel de Polícia; a entrada do Hospital Bom Jesus e, ao fundo, o Cemitério São João Batista, na popular e antiga Praça dos Três Poderes, em Simão Dias. ( Foto de 1989, por Beto Déda). |
O aguadeiro
pensou, mas deu diminuto crédito à advertência do vidente. Estava crente no
poder do seu cordão de búzios.
Passados
alguns dias, Bigodinho planejou “visitar” a bodega de Zé Calado, um senhor
idoso, calmo e muito paciente, que nunca falava de seu instinto forte e coragem
para e enfrentar situações difíceis. O bodegueiro morava com a mulher (Dona
Flora) na própria bodega. Fora da lide comercial, eles costumavam frequentar as
festas religiosas e também os leilões e reisados, realizados com certa
frequência naquela época.
Com o
anúncio de que seria realizado na noite de uma sexta-feira um baita reisado na
região e certificando-se que lá estariam presentes Seu Zé Calado e dona Flora,
Bigodinho decidiu concretizar seu plano no decorrer da referida festividade.
Planejou
entrar na bodega pela porta dos fundos, onde estava a cozinha do casal
comerciantes. Ali a parede era de taipa, o que facilitaria o arrombamento.
Assim pensou e assim o fez.
Passou
entre os arames da cerca e foi direto para a porta dos fundos da bodega.
Percebeu que a porta estava fechada com um pau de travessão. Então começou a
cavar um pequeno buraco na parede de taipa para meter o braço e tirar o
travessão que trancava a porta.
Feito o
buraco, enfiou o braço para pegar o travessão... Então surgiu o imprevisto: seu
braço ficou preso, torcido e amarrado por alguém que estava no interior da
casa. A situação ficou feia, sofrendo a dor no braço, preso na parede, o danado
gemia baixinho e praguejava sem sucesso: “Solta, fi da peste”...
Dentro da
casa estavam Zé Calado e sua mulher, arrochando o nó da corda
para amarrar o braço do invasor e imobilizá-lo no lado de fora,
colado à parede.
O que
Bigodinho não sabia é que, no início da noite, Dona Flora estava adoentada, de
modo que o casal desistira de ir ao leilão. Foram para cama cedo.
Horas mais
tarde, ao ouvir o som estranho na cozinha, Dona Flora acordou o marido. Com as
devidas cautelas, silenciosos, foram até o local e notaram que estavam
arrombando a parede de taipa. Pacientemente esperaram e, quando o invasor meteu
o braço no buraco da parede, Seu Zé o agarrou fortemente e D. Flora amarrou a
um pedaço de madeira.
O Bigodinho
passou a noite gemendo, em pé, quase pendurado à parede, com o braço preso no
interior da casa.
Ao
amanhecer, chamaram a polícia e levaram o penetra para a cadeia situada na Praça
dos Três Poderes da cidade, passando primeiro pelo Hospital Bom Jesus,
onde recebeu os primeiros curativos necessários no braço inflamado. O
triste presságio do rezador estava se tornando realidade.
Passados dois
dias da prisão, atendendo pedidos, Mestre Zinho foi visitar o desditoso
arrombador. Após alguma conversa, o rezador perguntou onde
estava o cordão de búzios, e o prisioneiro passou a mão no pescoço e
sentindo a falta, fez um gesto de espanto e lembrou que, ao passar pela cerca
para ir à casa do Zé Calado, o cordão enganchou no arame farpado e partiu. Na
pressa para realizar seu indigno plano, esquecera de apanhar o amuleto.
Na conversa
com o rezador, Bigodinho tristonho, envergonhado, lamentava não ter ouvido os conselhos do velho vidente e, triste, repetia como se rezasse uma ladainha: “Infelizmente essa
era a minha natureza…”, e complementava: “Não acontecerá
novamente...”.
A prisão do
conhecido aguadeiro foi motivo de muitos comentários naqueles dias. Logo
sugiram rumores de outros casos de arrombamento que passaram a atribuir ao infeliz
prisioneiro. Muitos asseguravam se tratar de um larápio contumaz.
Entretanto,
como sempre acontece, surgiram fortes controversas sobre os motivos do mal proceder
do aguadeiro.
Para
o Mestre Zinho, o destino reservou um caminho triste e medonho para Bigodinho,
pressionando-o a ingressar no mundo da delinquência.
Conversei e
muito perguntei ao referido rezador e ele, pacientemente, me contou que conhecia
a vida do infeliz aguadeiro. Assegurou-me que era um homem honesto, que cuidava
com muito esforço de sua família, constituída da mulher e cinco crianças. Trabalhava duro, levando água
para as residências. Era o que sabia fazer. No inverno, com muita chuva e as
cisternas e os porrões das casas cheios, ele ficou sem trabalho.
O rezador complementava
que o Bigodinho, sentindo que lhe negavam outro serviço e sem condições de
alimentar sua família, lamentavelmente prestou-se a arrebatar dos outros o que
lhe faltava.
O desditoso
aguadeiro permaneceu um longo período vendo o sol quadrado, enquanto aguardava
o vagaroso processo que o condenou. Dizem que ele entrou em uma forte depressão
e, amargurado, arrependido, remoendo seus erros, sofreu uma aguda dor no
coração, com morte súbita.
Foi assim
que o Bigodinho passou pelos famosos prédios vizinhos que justificaram o nome
popular da antiga “Praça dos Três Poderes” em Simão Dias, o hospital,
a cadeia e o cemitério, tudo conforme previra o velho rezador.
Ao fim e ao
cabo, deixou a família aos cuidados da pobre esposa, que penou o resto da vida,
trabalhando a duras penas na represa do Areal, lavando roupa para famílias do
bairro. Mesmo assim, conseguiu honestamente criar e educar seus filhos e filhas,
contando com a ajuda de pessoas bondosas do bairro em que viviam.
Aracaju, 23/09/2024
Beto Déda
Adoro ouvir suas recordações!!
ResponderExcluirObrigado!
ResponderExcluirMaravilha de texto Seu Beto. Senti-me lá, no cenário, senti até o cheiro do mato, vi o arame farpado, os potes de água 💦 e a fechadura de travessão da bodega (igualzinha à da bodega da minha tia Dina, no sítio do meu Avô em Boquim).
ResponderExcluirAdorei!
Flávio Lisa
Um abraço, meu caro Flávio. Percebo que você vibra com as lembranças dos tempos de criança. E essa é a razão que me estimula escrever.
ExcluirQuerido tio Beto, a minha grande admiração pelos seus escritos pode até tornar-me suspeito de uma avaliação não isenta, mas, como é com a minha cabeça que eu penso, e não com a dos outros, eu me dou o pleno direito de aplaudir aquilo que me encanta, como é o caso desse seu texto.
ResponderExcluirConsidero esse o melhor de todos os seus escritos. Aqui não está apenas a lembrança de um fato isolado, mas uma narrativa de um episódio que ocorre em todas as partes do mundo, desde que o mundo é mundo.
As tragédias da vida de Bigodinho e da sua família continuam existindo em todo o mundo globalizado. É a tragédia dos excluídos, do “lúmpen-proletariado” de Marx, dos presidiários pobres do Brasil e das suas famílias, é o holocausto do povo palestino e o drama dos refugiados que descumprem as regras estabelecidas pelo sistema por falta de alternativas de vida.
A atitude de Seu Zé Calado seria a atitude da maioria de nós, caso estivessemos na sua condição, com a ressalva de que o acirramento da violência nos dias atuais teria reservado uma sorte bem mais trágica para a vítima. Caso esse fato tivesse acontecido em nossos dias, não obstante o progresso das instituições, as associações de todo tipo de mal-feito ao miserável, sem qualquer prova e sem nenhuma misericórdia, teriam sido bem mais intensas.
O que eu acho mais grave na tragédia desse coitado é omissão do estado e da sociedade “cristã”, que negam o mínimo ao miserável trabalhador, que não tem alternativas de sobrevivência quando lhe faltam as condições de trabalho. Aquele que presta o serviço mais pesado e mais indispensável à vida nada vale quando ele comete o erro de reagir às regras de um jogo que lhe tira as possibilidades de sobrevivência.
Nesse seu texto estão as marcas de um grande escritor: a sensibilidade para identificar os dramas comuns às pessoas, os seus sentimentos e emoções; a riqueza da cultura local e a exploração detalhada dos fatos. A conjunção dos “três poderes” para ilustrar a situação narrada ficou excelente.
Finalmente, como toda boa escrita fica inscrita de forma indelével em nossa memória, este seu texto se soma às memórias das cenas e cenários que as obras literárias gravaram definitivamente na minha lembrança. Destaco entretanto que, somando a todo esse enredo a minha crença espírita, eu consigo imaginar o seu próximo capítulo e nele vejo o Mestre Zinho ouvindo de Jesus: “Vinde, bendito do meu pai, possuí por herança o reino que está preparado para você desde a fundação do mundo”. O mestre Zinho abaixa a cabeça e, humilde, o pergunta: mas, quando foi que o senhor esteve preso e eu fui te visitar? E Jesus o reponde: quando você visou Bigodinho.
Meu querido Marco, bom dia! Li com emoção seu comentário e me emocionei. E esta emoção teve como causa a sua correta interpretação do que escrevi. Você soube transportar para atualidade, o que narrei. E o fez com precisão. Suas palavras me encantaram e, confidencio, sempre pensei no seu Mestre Zinho como um abençoado, um ancião do interior, que tinha muita sabedoria e, no seu modo de expressar, sabia cativar as pessoas. Um abraço, meu querido sobrinho. Que Deus te abençoe!
ResponderExcluirObrigado, tio Beto. Na última frase do meu comentário troquei a palavra visou por visitou.
ExcluirO uso do teclado sempre causa atrapalhação ao redigir as palavras. Acontece também comigo.
ExcluirComo sempre Beto suas narrativas são de verdadeiras passagens no seu tempo de vivência na sua querida Simão Dias ,como fico emocionada ao ler
ResponderExcluirUm forte abraço primo e outro nan Leninha
Agradecemos imensamente, querido primo.
ResponderExcluirBela recordação, Deda. Valeu prestar atenção na rotina do Bigodinho.
ResponderExcluirÉ verdade. Um abraço.
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