quinta-feira, 3 de janeiro de 2013


Minhas aventuras como cobrador de “A Semana”.


Recentemente eu, Cláudio e Marcelo estivemos explicando à querida Yasmim como era editado o jornal “A Semana”, em Simão Dias. E isto me trouxe lembranças que repasso aqui, para conhecimento de meus não menos queridos netos.


 
O componedor e a caixa de tipos de chumbo.
No início dos anos cinquenta, eu e meu irmão Carlos Eugênio éramos garotos quando papai levou-nos para iniciarmos nosso aprendizado nas oficinas do jornal “A Semana”. O primeiro mestre foi o tipógrafo Sílvio, um rapaz que viera de Propriá acompanhando o novo maquinário ali adquirido. Começamos a aprender a arte de composição tipográfica, decorando a posição das letras móveis de chumbo no tabuleiro. A lição seguinte foi aprender a usar o componedor, que era uma peça de metal onde colocávamos os tipos formando as palavras. Depois de muito treinamento com letras de fontes grandes, passamos a compor pequenas notícias que eram incorporadas ao “boneco” do jornal.

Minha primeira composição tipográfica
(A Semana edição de 29.08.53)

Outra composição tipográfica também inesquecível.
(A Semana, edição de 23/04/55)
Nunca esqueci a minha primeira composição. Duas razões marcam esta lembrança: primeiro, por se tratar da comemoração do aniversário de minha querida irmã Nancy; segundo, a alegria de ver publicada no jornal a minha primeira composição tipográfica. Outra publicação inesquecível aconteceu depois, quando fiz a composição com a notícia (redação feita com ajuda de papai) do casamento dos queridos Maura/Haroldo .


 Vivi intensamente os trabalhos realizados nas oficinas do jornal, primeiro como auxiliar de tipógrafo, compondo, cortando as resmas de papel e dobrando-os na forma como seriam impressas. Também fui jornaleiro, entregando os exemplares pela cidade, fazendo as vendas avulsas e anualmente efetuando a cobrança das assinaturas e reclames. Para efetivarmos os recebimentos fazíamos a  impressão de talonários com recibos, posteriormente preenchidos por meu pai, ficando a tarefa de cobrança sob meu encargo.

Xilogravura de publicada em 31.08.63
A cobrança era tranquila e os assinantes me atendiam com presteza. O valor da assinatura não acompanhava a inflação da época e nem correspondia aos gastos com o jornal. E papai fazia piada sobre isto, publicando xilogravura sobre a “falta de carestia” na cobrança do semanário. O valor era realmente baixo e somente um ou outro apresentava ligeira dificuldade no pagamento, que era vencida por minha implacável irreverência de garoto. De todos os assinantes um era extremamente cuidadoso com a pontualidade nos pagamentos. Era um funcionário público zeloso e, como o fazia em sua faina como servidor federal, também na sua atividade privada era exigente nos prazos dos deveres e dos haveres. Seu lema era pagar em dia e receber no prazo certo. Contabilizava tudo.
Pois bem. Em uma tarde noite, do inicio do ano, quando eu começava a fechar as portas da redação do jornal, chega o referido zeloso senhor, para efetuar o pagamento de sua assinatura. Embora conhecendo a rigidez que cuidava de suas obrigações, tentei convencê-lo a efetuar o pagamento no dia seguinte, lembrando-lhe que já estava escurecendo e já tinha apagado a petromax (uma espécie de lampião, de uso comum na cidade que na ocasião não tinha energia elétrica). Não convencido de minhas observações, retrucou:

- Mas Beto, eu peço o favor de receber hoje. Olhe, já dei baixa em minha contabilidade e o dinheiro já saiu do meu caixa. Eu não tolero fazer estorno. Atenda-me, por favor!

Seu olhar suplicante foi convincente. E sob a fumaça e a luz lúgubre de um candeeiro (acender a petromax era trabalhoso) recebi o valor da assinatura. Passei-lhe o recibo e ele  saiu contente com seu caminhado inconfundível, com um pé no sapato e outro no chinelo.  Sem dúvida era o mais pontual pagador de “A Semana”.
...

O jornal tinha boa circulação em nossa região e eu cuidava da cobrança não só de Simão Dias, como também de Lagarto, Riachão do Dantas e Paripiranga. Naquela época, a cobrança em Paripiranga era feita na sexta-feira, e o transporte usado para aquela cidade baiana era o caminhão de Seu Antônio Barbadinho.

A cobrança em Lagarto era feita às segundas-feiras, dia da grande feira da cidade. Eu viajava na marinete de seu Josino. Saía às 5 horas da manhã. Teve um dia que a marinete estava lotada, muita gente viajando em pé, inclusive eu. Enjoei e vomitei sujando a camisa de um colega de pelada da Praça de São João, chamado Pneu. Ele deu uma bronca de arrepiar. E eu pálido, mal consegui expressar minha desculpa, mostrando também minha camisa e o talão de recibos de assinaturas sujos com restos de vômito. Foi um vexame.

Ainda em Lagarto, outro fato inesquecível. Fui a uma casa muito bonita e luxuosa de um assinante que, parece-me, era dono do cinema da cidade. Quando entrei na casa escorreguei na cerâmica lisa e encerada e dei com a “padaria” ao chão, deslizando e ouvindo a risada das pessoas ali presentes. Uma baita queda!  Depois, contando esse deslizamento a minha mãe, ela riu muito e me abraçou com carinho. Valeu a queda pela ternura transmitida por minha saudosa mãe. Uma beleza. 

...

Em Riachão do Dantas também aconteceu uma inesquecível aventura. Para realizar a cobrança naquela cidade eu viajava de marinete até Lagarto e de lá pegava um caminhão pau de arara. Certa vez, quando eu já contava com meus 17 anos de idade,  em uma das cobranças em Riachão, encontrei-me com o colega Zé Almeida, que comigo estudava no Colégio Jackson Figueiredo e que muitos anos depois também foi meu colega no BNB. Zé Almeida morava naquela cidade e ajudara-me a identificar os assinantes, além de me oferecer um almoço na residência de seu pai, o Deputado José Almeida Fontes. À tardinha, após efetuar as cobranças, voltei a Lagarto no mesmo caminhão pau de arara. Na viagem, aconteceu uma perigosa briga.Um dos passageiros gritou, tirando gracejo ao avistar uma moça que trabalhava em um terreno próximo a estrada. Outro passageiro que dava a entender ser parente da moça ofendida encarou o ofensor e iniciaram um bate-boca raivoso. Então um deles sacou uma pistola (tipo garrucha de dois tiros) e mirou o adversário. Todo pessoal se abaixou, menos eu, que estava sentado em frente ao passageiro ameaçado e fui por ele agarrado como escudo. Em uma agonia sem precedentes, debalde tentei me desvencilhar do briguento. A sorte é que o caminhão parou para cobrar as passagens. Consegui me livrar da posição de escudo e pulei, não sei como, do caminhão. A algazarra aumentou, com os passageiros gritando e pulando do pau-de-arara. Foi quando, inesperadamente, ouvi a voz de Almeida, chamando-me para entrar num jipe de um amigo que com ele ia para Lagarto. Nem vacilei e de um só pulo já estava no rústico veículo, que naquela situação parecia ser o mais confortável dos automóveis. Foi a salvação. Até hoje, não sei o final daquele bafafá entre os desafetos viajantes. E sempre que me encontro com o Almeida menciono aquele fato, lembrando que ele me salvou de uma inusitada aflição.

Estas são algumas das muitas aventuras dos velhos tempos. Se o bom Deus me favorecer em tempo, paciência e engenho para usar o teclado, outras lembranças eu relatarei para meus queridos netos.

Aracaju, 03/01/2013

Beto Déda

Um comentário:

  1. Que beleza de narrativa meu caro Beto. Você tem uma memória privilegiada. Parabéns. Um forte abraço.

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