Tonho de Manequinha e a Praça de São João
Em Simão Dias tenho
vários amigos de infância. Lembro-me, hoje e agora, da atuação de um deles que
exercia certa liderança entre os garotos da Praça ou Parque de São João. Meu amigo era um garoto baixo, moreno, sorridente,
que adorava organizar as brincadeiras infantis, coisas de crianças do interior
de uma época em que a criatividade era o suporte de boas diversões.
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Seu Manequinha |
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Seu Zeca Déda |
Tínhamos razões para uma
boa amizade, porque partilhávamos de semelhanças. Nascemos em Simão Dias, nossos pais eram
baianos de Paripiranga, morávamos próximos e fazíamos travessuras na Praça de
São João. O nome do pai desse garoto era Manuel Moura, conhecido como
Manequinha, um famoso ferreiro de nossa terra e que, nas horas vagas,
dedicava-se à arte da música, tocava na Filarmônica Lira Santana. Meu pai
chamava-se José de Carvalho Déda, conhecido como Zeca Déda, que era advogado e,
nas horas vagas, dedicava-se à arte da literatura como jornalista e escritor.
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Tonho de Manequinha (Foto de Vânia de Tonho de Manequinha) |
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Beto de Zeca Déda (Foto de Bruno de Beto de Zeca Déda) |
Em nossa cidade era
comum se identificar os garotos acrescentando-se ao prenome o apelido ou nome
do próprio do pai. O nome do meu amigo de infância é Antônio Moura, mas é
conhecido como Tonho de Manequinha, tal qual eu sou conhecido como Beto de Zeca
Déda.
Conheci meu amigo na
tenda de ferreiro seu pai, onde ele cadenciava a batida do martelo na bigorna,
ajudando-o a modelar o ferro ou a
alimentar a chama das brasas puxando o grande fole.
Com a esperteza comum
aos garotos daquela época, usávamos a imaginação para nos divertir. A falta de
uma bola de borracha não era entrave pra uma boa partida de futebol, que
jogávamos entres as árvores da Praça São João. Liderados por Tonho de Manequinha, íamos até o
Matadouro e pegávamos uma bexiga de boi, enchíamos de ar, e estava improvisada
uma formidável bola, que diante do aspecto medonho, com as pelancas salientes e
empretecidas pela areia do parque, causava asco aos não iniciados.
E depois da pelada,
íamos tomar banho no riacho Caiçá, próximo ao antigo Matadouro. Naquela época banhar-se
naquele riacho era proibido por nossos pais. Diziam que causava o mal da
barriga-d’água, efeitos do caramujo vetor da esquistossomose. Mas aparentemente
a água do riacho era límpida e, antes de entrarmos para o banho, a
transparência da água parecia uma grande lupa, aproximando o fundo do poço,
dando a impressão de que era raso. E o amigo Tonho de Manequinha advertia aos
novatos que não se iludissem com a aparência, sugerindo aos que não sabiam
nadar que ficassem perto da margem ou usassem cabaças salva-vidas amaradas
entre os sovacos (naquele tempo usávamos os vasos de cabaças para aprender a
nadar).
Ao mencionar “sovaco”,
lembrei-me de uma cena irônica: certo dia apareceu por lá um goleiro do time do
Flamengo de nossa terra, que diziam ter uma sovaqueira danada. Então o tal
goleiro tomava banho e pegava a lama do fundo do riacho e passava nas axilas,
dizendo que era um santo remédio para acabar com o “fedor de suor”. Mesmo de efeitos
discutíveis, todos nós passávamos a lama “desodorante” do Caiçá nos sovacos.
Depois do banho íamos
até o Armazém de Cipriano e quem tinha alguns centavos comprava merenda: um
pedaço de jaca, uma cocada ou um funil de torresmos (era o tempo em que se
usava a banha de porco para fazer frituras; torresmo era o que sobrava do
processo de se extrair a banha do toucinho). Na bodega de Cipriano os torresmos
ficavam em um saco em frente ao balcão e eram vendidos em funil feito com jornal
usado, que ficava untado de gordura. A meninada comia com vontade e, quando se
passava da conta, o resultado já era conhecido: uma diarreia fedorenta
danada...
Em uma tarde de verão,
comprei uma jaca mole no Armazém de Cipriano. Com a jaca na cabeça, caminhava todo
concho em direção ao portão de minha casa, quando percebi que estava sendo
observado por Tonho. Ele apontava para mim e dizia alguma coisa para os colegas
sentados à sobra de um pé de tamarindo. Levantaram-se e começaram a correr em
minha direção. E eu também corri, mas foi debalde meu esforço. Alcançaram-me,
derrubaram a jaca no chão e todos, inclusive eu, devoramos os doces
bagos. Minhas reclamações ocorreram depois, com sopapos recíprocos com as mãos
grudando de visgo...
No tempo de frutas,
depois do jogo de bola íamos aos sítios de Seu Jovino ou de Seu Hilário pegar
manga e caju. E relembro agora as correrias e o susto provocados pelos meninos mais
experientes ao anunciarem imaginários disparos de espingardas carregadas com
sal grosso.
Na época a praça tinha
diversas árvores: tamarindeiros, eucaliptos, mucunã ou olho-de-boi, fícus-benjamim e acácia-amarela. Tudo era diversão: fazíamos carrapetas com as sementes de
eucalipto; esfregávamos sementes de olho-de-boi nas calçadas para esquentá-las
e tocá-las nos braços dos colegas; saboreávamos os tamarindos e deles também
fazíamos deliciosos e azedinhos refrescos (que denominávamos “ponche de
tamarindo”).
Na Praça de São João,
nas sombras dos tamarindeiros, brincávamos com bolas de gude, cavando com o calcanhar, em linha reta, três buracos (que denominávamos "buscas" ou "burcas), com nomes
interessantes, de ida e volta: primeira, segunda, terceira, segundo papas e
papones. Certa tarde, jogávamos bola de gude quando o Tonho de Manequinha sugeriu que
todos lhe prestassem atenção. E anunciou que daria um exemplo formidável de como
fazer uma pequena “burca” ou buraco. Ele estava acocorado, com a “poupança” próxima
ao chão. Esticou a parte da perna do calção, alargando-a, e soltou um grande “pum”. A poeira
da terra fina voou e em seu lugar ficou um buraco, representando o efeito do peido...
Vivemos uma infância encantadora, de inúmeras
brincadeiras, de muita criatividade e de alegrias inesquecíveis. Até hoje penso
ouvir nossos felizes e risonhos gritos ecoarem entre as frondosas árvores do
antigo parque...
Aracaju, 13/12/2016
BETO DÉDA
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