segunda-feira, 18 de junho de 2018


“Nóis  rico...”

O Café/Bar do amigo Chico Bina ficava na Rua da Palha, ao lado do antigo Açougue Municipal e quase em frente ao armazém que fora de Seu Dominguinhos e Dona Noquinha.

Nas manhãs dos dias de feira em Simão Dias (aos sábados e quartas), o ponto comercial do Chico era o local certo de encontro do pessoal que trabalhava no talho da carne verde e nos arredores. Era servido um café forte e gostoso sempre acompanhado do pão quentinho da padaria de Seu Oscar Rocha, que ficava na outra esquina, de frente para a Rua do Comércio e ao lado do início da Rua do Mulungu.


Ali era o meu ponto preferido para tomar café nas manhãs dos sábados, nos intervalos depois de dobrar e separar os exemplares do jornal “A Semana” para distribuição nas casas dos assinantes.

Eu saboreava o café com pão bem amanteigado e ficava atento, ouvindo com atenção a conversa do pessoal que lotava as diversas mesas. Os frequentadores falavam alto, faziam troça dos acontecimentos da cidade, discutiam os assuntos publicados no jornal e as pendengas políticas da localidade.

Os risos se multiplicavam quando por lá aparecia um contumaz e conhecido vociferador que não media palavras em maldizer a carestia ou meter o pau em político que lhe era adversário. O homem babava ao falar mal de alguma coisa. O pessoal gostava de ouvir e de rir com os disparates.


 Zé Povo: Sobe 'frecha'! Um dia puxarei a 
escada da tua usura!...
Xilogravura de meu pai, Carvalho Déda, sobre
o aumento da carne bovina. Página 2 do jornal
 "A Semana", edição de 28/11/1959.
Lembro-me que em certa manhã a discussão era entre comerciantes de gado e açougueiros, envolvendo o preço alto da arroba de boi e o consequente refugo de carne nas bancas do Açougue, como acontecera na última feira. A conversa ia se desenvolvendo e o pessoal começou a comentar o absurdo da inflação, que já assombrava os conterrâneos naquela época, e também a culpar os fazendeiros pela ganância. Então um dos participantes começou a defender os criadores de gado e afirmar que o grande causador era o governo.

Ao ouvir as ponderações do gajo defensor dos fazendeiros, um magarefe que tomava café misturado com o aguardente Genebra Guichard, saiu-se com essa:

- Qual’é, amizade, nessa sua defesa dos fazendeiros você parece aquele nosso conterrâneo que apelidávamos de “Nóis Rico”.

E complementou:

- Cuidado! Senão você vai ter que pagar sua conta da compra dos bois em dinheiro...

Mal terminou de falar, ouviram-se gargalhadas fortes nas mesas circunvizinhas.

Eu fiquei sem entender o que tinha dito o homem do café com Genebra e o motivo das risadas.

Aproximei-me de um dos presentes, um senhor idoso, muito conceituado, que falava mansamente e com sabedoria. Indaguei pra ele sobre a história daquele homem com o apelido de “Nóis Rico” e o motivo de tanto riso.

O interpelado olhou pra mim e, reconhecendo minha mocidade, disse que era um fato antigo e hilário, que os velhos marchantes da terra sempre lembravam. Então me contou o caso que repasso aqui, em um esforço de memória. De antemão, asseguro que tudo é verdade, comprovada em conversa com outros patrícios que viveram naquela época. 

Em muitas localidades de nosso município prevaleciam os minifúndios de agricultores. As pequenas propriedades se mostravam mais favoráveis e produtivas com o cultivo de lavouras do que com criação de gado. Os lavradores se sentiam orgulhosos do que faziam e, com o resultado do amanho de sua pequena gleba, mantinham suas famílias com dignidade. 

Acontece que, como toda regra tem exceção, não faltavam entre os donos de sítios, aqueles que ocupavam o terreno com pastagens e pequenos lotes de bovinos. Entre eles, estavam os que se dedicavam exclusivamente ao comércio, ou seja, intermediavam a compra de gado dos agropecuaristas e repassavam aos marchantes para abate e comercialização no Açougue Municipal.  Alguns deles se julgavam fazendeiros e agiam como se fossem senhores da Casa Grande. Acreditavam nisto e menosprezavam os pequenos lavradores. Desconheciam, certamente, que suas próprias convicções eram motivos de galhofas entre os que interagiam em seus negócios.

Pois bem; nos idos da primeira metade do século XX, em nossa cidade, vivia um pequeno proprietário rural que pensava e agia como se fosse um rico fazendeiro. Convicto de que fazia parte da elite, não tinha cerimônia em propagar sua pretendida classe e não perdia oportunidade em debochar daqueles que acreditava ser de classe inferior.

Quando estava no escritório de um conhecido latifundiário, ficava muito à vontade e costumava elogiar o cafezinho que lhe era servido, dizendo em voz alta:

  - “Isto é uma coisa que NÓIS RICO apreceia!

E o pessoal da Casa Grande se entreolhava e expressava o sorriso de mofa...

Repetiu tanto o "Nóis Rico" que passou a ser apelidado e conhecido por tal expressão.

Em uma tarde, o pretenso rico foi a uma grande fazenda comprar gado para abate. Foram ao pasto ele e o fazendeiro. Montado em um burro especial, com sela mineira coberta com uma pele lãzuda de carneiro e chapéu baeta de marca, ele seguia o rico proprietário da fazenda/engenho. Olhou em volta do gado pastando e exclamou para o fazendeiro, que esboçou um sorriso incrédulo:

-  Beleza de rebanho qui nóis rico gosta de apreiciá...

Depois de escolher alguns bois gordos, o comprador perguntou o preço, concordou com a quantia fixada e afirmou que pagaria depois do abate do gado.

Ouvindo a forma de pagamento proposta, o fazendeiro não concordou, exclamando com o sorriso de quem prega uma peça:

- Nada disso, "colega"! Nunca esqueça que “nóis” ricos não compramos fiado. Pagamos as compra no ato, em dinheiro vivo...

O suposto rico engoliu seco e desistiu da compra.

O pior é que o causo foi divulgado e passou a ser sempre lembrado em minha terra. Tal como fora mencionado no Bar de Chico Bina pelo marchante que gostava de café com aguardente.

 ...

Duvido que você não conheça um “Nóis Rico” em sua comunidade. Nos dias atuais é fácil identificá-los: eles estão desinibidos e não se acanham em se mostrar e agir como se fossem senhores da Casa Grande.
                               
            
Aracaju, 17 de junho de 2018.

Beto Déda

Nenhum comentário:

Postar um comentário