“Nóis rico...”
O Café/Bar do amigo Chico Bina
ficava na Rua da Palha, ao lado do antigo Açougue Municipal e quase em frente ao
armazém que fora de Seu Dominguinhos e Dona Noquinha.
Nas manhãs dos dias de
feira em Simão Dias (aos sábados e quartas), o ponto comercial do Chico era
o local certo de encontro do pessoal que trabalhava no talho da carne verde e
nos arredores. Era servido um café forte e gostoso sempre acompanhado do pão
quentinho da padaria de Seu Oscar
Rocha, que ficava na outra esquina, de frente para a Rua do Comércio e ao lado
do início da Rua do Mulungu.
Ali era o meu ponto
preferido para tomar café nas manhãs dos sábados, nos intervalos depois de dobrar
e separar os exemplares do jornal “A Semana” para distribuição nas casas dos
assinantes.
Eu saboreava o café com
pão bem amanteigado e ficava atento, ouvindo com atenção a conversa do pessoal que
lotava as diversas mesas. Os frequentadores falavam alto, faziam troça dos
acontecimentos da cidade, discutiam os assuntos publicados no jornal e as
pendengas políticas da localidade.
Os risos se
multiplicavam quando por lá aparecia um contumaz e conhecido vociferador que
não media palavras em maldizer a carestia ou meter o pau em político que lhe
era adversário. O homem babava ao falar mal de alguma coisa. O pessoal gostava
de ouvir e de rir com os disparates.
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Zé Povo: Sobe 'frecha'! Um dia puxarei a
escada da tua usura!...
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Xilogravura de meu pai, Carvalho Déda, sobre
o aumento da carne bovina. Página 2 do jornal
"A Semana", edição de 28/11/1959.
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Ao ouvir as ponderações
do gajo defensor dos fazendeiros, um magarefe que tomava café misturado com o aguardente
Genebra Guichard, saiu-se com essa:
-
Qual’é, amizade, nessa sua defesa dos fazendeiros você parece aquele nosso conterrâneo
que apelidávamos de “Nóis Rico”.
E complementou:
- Cuidado! Senão você vai ter que pagar sua conta da compra dos bois em
dinheiro...
Mal terminou de falar, ouviram-se
gargalhadas fortes nas mesas circunvizinhas.
Eu fiquei sem entender
o que tinha dito o homem do café com Genebra e o motivo das risadas.
Aproximei-me de um dos
presentes, um senhor idoso, muito conceituado, que falava mansamente e com
sabedoria. Indaguei pra ele sobre a história daquele homem com o apelido de “Nóis
Rico” e o motivo de tanto riso.
O interpelado olhou pra
mim e, reconhecendo minha mocidade, disse que era um fato antigo e hilário, que
os velhos marchantes da terra sempre lembravam. Então me contou o caso que
repasso aqui, em um esforço de memória. De antemão, asseguro que tudo é
verdade, comprovada em conversa com outros patrícios que viveram naquela época.
Em muitas localidades de
nosso município prevaleciam os minifúndios de agricultores. As pequenas propriedades se
mostravam mais favoráveis e produtivas com o cultivo de lavouras do que com
criação de gado. Os lavradores se sentiam orgulhosos do que faziam e, com o
resultado do amanho de sua pequena gleba, mantinham suas famílias com dignidade.
Acontece que, como toda
regra tem exceção, não faltavam entre os donos de sítios, aqueles que
ocupavam o terreno com pastagens e pequenos lotes de bovinos. Entre eles, estavam os que se dedicavam
exclusivamente ao comércio, ou seja, intermediavam a compra de gado dos
agropecuaristas e repassavam aos marchantes para abate e comercialização no
Açougue Municipal. Alguns deles se julgavam
fazendeiros e agiam como se fossem senhores da Casa Grande. Acreditavam nisto e
menosprezavam os pequenos lavradores. Desconheciam, certamente, que suas próprias
convicções eram motivos de galhofas entre os que interagiam em seus negócios.
Pois bem; nos idos da
primeira metade do século XX, em nossa cidade, vivia um pequeno proprietário
rural que pensava e agia como se fosse um rico fazendeiro. Convicto de que
fazia parte da elite, não tinha cerimônia em propagar sua pretendida classe e não
perdia oportunidade em debochar daqueles que acreditava ser de classe inferior.
Quando estava no
escritório de um conhecido latifundiário, ficava muito à vontade e costumava elogiar
o cafezinho que lhe era servido, dizendo em voz alta:
- “Isto é uma coisa que NÓIS RICO apreceia!
E o pessoal da Casa
Grande se entreolhava e expressava o sorriso de mofa...
Repetiu tanto o "Nóis Rico" que passou a ser apelidado e conhecido por tal expressão.
Em uma tarde, o
pretenso rico foi a uma grande fazenda comprar gado para abate. Foram ao pasto
ele e o fazendeiro. Montado em um burro especial, com sela mineira coberta com
uma pele lãzuda de carneiro e chapéu baeta de marca, ele seguia o rico
proprietário da fazenda/engenho. Olhou em volta do gado pastando e exclamou
para o fazendeiro, que esboçou um sorriso incrédulo:
- Beleza de rebanho qui nóis rico gosta de
apreiciá...
Depois de escolher alguns
bois gordos, o comprador perguntou o preço, concordou com a quantia fixada e
afirmou que pagaria depois do abate do gado.
Ouvindo a forma de
pagamento proposta, o fazendeiro não concordou, exclamando com o sorriso de quem prega
uma peça:
- Nada disso, "colega"! Nunca
esqueça que “nóis” ricos não compramos fiado. Pagamos as compra no ato, em dinheiro
vivo...
O suposto rico engoliu
seco e desistiu da compra.
O pior é que o causo
foi divulgado e passou a ser sempre lembrado em minha terra. Tal como fora mencionado no Bar de Chico Bina pelo
marchante que gostava de café com aguardente.
...
Duvido que você não
conheça um “Nóis Rico” em sua
comunidade. Nos dias atuais é fácil identificá-los: eles estão desinibidos e
não se acanham em se mostrar e agir como se fossem senhores da Casa Grande.
Aracaju, 17 de
junho de 2018.
Beto
Déda
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