segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019


Tio Totonho: seus ditos e sua longevidade...

Recentemente dois fatos levaram-me a lembrar do meu saudoso tio Totonho, irmão de minha avó Olívia Déda.

 A primeira lembrança aconteceu ao ler um artigo de um jornalista, que em sua crítica às patifarias do atual governo, dizia que os mandatários do Brasil pensam que somos todos beócios.

Essa palavra me fez lembrar o meu tio Totonho. Ele costumava usar o termo beócio ao se referir aos seus desafetos, de modo a evidenciar as imbecilidades e ignorância por eles praticadas. Aí então, exclamava em voz alta, ritmado com o toque de sua bengala:

- Fulano de  tal, aquele beócio, continua cometendo imbecilidades...

Se vivo estivesse, certamente diria que beócios são os que estão em Brasília envergonhando o país.

No sentido oposto, quando queria elogiar alguém, passava a mão em volta da boca e dizia: “Belo Moço”. E repetia as palavras “belo moço”, elevando a cabeça para demonstrar sua sinceridade – tal e qual aparece entre tio João e meu irmão Washington Oscar, na foto que reproduzo abaixo. 

   

A segunda lembrança aconteceu diante de uma indagação realizada, via telefone, por meu bom primo Paulo César, lá da região do Jatobá, onde curte as ondas de uma bonita praia. Indagou o Paulo César qual o nome completo do nosso tio Totonho. Então as lembranças afloraram.

Meu tio era alto,espigando, simpático e

elegante mesmo. Pilhérico, mas tinha o
pavio curto. Quando pisavam em seus calos
a resposta era imediata e contundente.
O nome de batismo do meu tio era ANTÔNIO GARCIA SILVEIRA. Ele nasceu no dia 22 de fevereiro de 1882, na freguesia de Patrocínio do Coité, que hoje é o município denominado Paripiranga (Ba).   Era filho de José Alves dos Anjos e D. Maria Garcia Silveira. Ainda moço foi para casa de seus irmãos em Vila Nova da Rainha, que hoje e conhecida como a cidade de Senhor do Bonfim, no Estado da Bahia. Depois mudou-se para Salvador, onde foi trabalhar como operário em uma indústria têxtil. Casou-se, e algum tempo depois ficou viúvo. Veio morar em Simão Dias e aqui casou pela segunda vez. Passados alguns anos, sua mulher faleceu e passou a sofrer novamente com a solidão da viuvez.

Conheci meu tio Totonho quando ele morava no povoado Oiteiros, e vinha passar os fins de semana na casa de minha avó Olívia.  Quando chegava, portava uma longa barba branca que eu sempre admirava, mas a admiração durava pouco, porque a primeira coisa que ele fazia era ir ao barbeiro para cortá-la. Fazia isto na barbearia que ficava em frente à casa de tio João Déda, na Rua da Lama. O barbeiro era Seu Luiz, casado com uma filha de dona Jovem Nascimento e era pai de Manoel e Ulisses. Eu olhava para o rosto escanhoado do meu tio e indagava por que razão cortara sua bonita barba. E ele, passando a mão em volta da boca e depois coçando o gogó, respondia demonstrando impaciência:

“Ora, pois! Pra remoçar!”

A lembrança do tio me fez cultivar, quando passei dos cinquenta anos, a barbicha branca que até hoje conservo.

Depois que enviuvou, meu tio passou a morar na casa de minha avó. Gostava de tomar uns pileques e ia até o escritório de meu pai (na época o escritório de advocacia do meu pai ficava na Rua dos Ribeiros, entre as casas de Seu Agenor Viana e a de Gervásio, Arlinda e Amélia). Meu pai alugara aquela casa ao Seu Manoel Dantas, que era conceituado farmacêutico da cidade. Lembro-me bem que um dia meu tio Totonho apareceu no escritório e começou a falar alto, quase em tom de discurso. Eu não sabia do que se tratava, mas fiquei curioso com seu ar incisivo e eloquente. Meu pai notou minha curiosidade e fez um sinal, balançando a mão fechada com o dedo polegar em direção à boca, para indicar que o tio andara bebendo. Em seguida soube que o tom mordaz de sua fala era contra um desafeto.

Meu pai gostava muito do tio e cuidou dele quando minha avó faleceu. Depois, com a morte de papai, eu passei a cuidar do tio. Ele era pouco proseador, mas gostava de narrar piadas picantes. Tinha o pavio curto. Brabo mesmo! Ninguém tentasse pisar em seus calos que a resposta era incisiva e pontual. Pegava pra valer...

Lembro-me que em um domingo, meu irmão Artur esteve nos visitando em Simão Dias; ele e um colega juiz almoçaram em minha casa. Antes do almoço, tomamos um aperitivo e servi também ao meu tio. Conversávamos animadamente e repetimos a dose para todos. Artur olhou para o copo do meu tio e se preocupou. O velho já passava dos 90 anos, tomou a terceira dose e depois, olhando para Artur, disse que faria uma coisa que os mais novos não ousariam. Dobrou uma perna, formando um quatro, e simulou um balanço. Seu gesto dissipou a preocupação do meu irmão e todos sorriram com a faceirice do tio. E ele empinou a cabeça e vociferou: “Viu aí, danado!”

Certa vez apareceu para falar comigo um senhor que morava próximo à casa do tio (casa que aluguei ao Seu João Conceição Neto – João de D. Clarita - e que ficava no fundo de sua loja de tecidos).  Então o tal vizinho disse que eu teria que tomar uma providência, porque o velho ficava nu, se mostrando para o povo da rua. Fui verificar. 

Era uma tarde de calor infernal. A porta da casa estava fechada, mas o janelão estava aberto. O velho estava sentado em uma preguiçosa no fundo da sala, nu, mostrando a pela branca coberta de esvoaçantes cabelos cor de neve. Para se ver o velho tinha que ser curioso e perscrutar a casa olhando pela janela. Indaguei a outros moradores da rua e ninguém confirmou que o meu tio andava se expondo nu. Então fui até o reclamante e ele, com a cara mais lisa do mundo, disse que o pessoal não fora olhar da janela. Aí então eu fui tão impulsivo quanto meu tio: mandei o tal “amigo” procurar o que fazer e deixasse de se enxerir na janela dos vizinhos. Aconteceu então um pequeno entrevero, do jeito que, na época, eu gostava de aprontar...

Lá pelo começo dos anos setenta, surpreendentemente, esteve em Simão Dias um senhor simpático de nome Sizenando Silveira, que também era filho de um irmão de tio Totonho. Ficou hospedado na casa de tio Sininho. O Sizenando morava na cidade de São Paulo, onde era o titular do Cartório de Registro Civil de Pessoas Jurídicas - 2º Ofício.

Contava o Sizenando que foi graças aos safanões recebidos do tio Totonho que ele passou a estudar as primeiras letras. E mostrava-se realmente agradecido. Presenteou o tio com uma bonita e grande mala (adornada com selos dos países que tinha visitado) com ternos brancos de linho e um chapéu panamá. Além do mais, passou a mandar pelo correio uma mesada que, parece-me, correspondia a um salário mínimo. Não era pouca a alegria do meu tio. Passou a andar pelas ruas de Simão Dias, diariamente, usando  com elegância o terno (que ele chamava de fado branco) e o chapéu panamá. E sempre era visto em uma barbearia contando piadas picantes, que ele dizia ser de autoria de Camões ou do Bocage...

Certa vez a pessoa que cuidava da mesada do tio me informou que ele estava esbanjando dinheiro com raparigas da Ponta da Asa. Não dei atenção ao informe. Dias depois, estava trabalhando no BNB e recebi um recado que devia me dirigir com urgência ao beco entre o Banco e o Cartório de tio Sininho, para ver a presepada do Totonho.

Fui lá. Cheguei de mansinho, sem ser notado pelo tio, que estava ao lado de uma mulher. Ele com a braguilha aberta e a dona com a ponta do dedo tocava e sentia a flacidez do cansado pênis. Então ele levantava a cabeça e arrematava:

“Viu aí, danada! Toma...”

Em seguida, fechava a braguilha, guardando sua coisa sempre mole, e metia a mão no bolso para tirar uma cédula de cinco cruzeiros e pagar a paciente rapariga.
    
Retirei-me sem ser visto e aprovei a diversão do tio. Na época ele já tinha ultrapassado os noventa e poucos janeiros bem vividos. Para a pessoa que também protegia meu tio, falei para não se preocupar. O fato que presenciei tinha um grande valor para o querido idoso e, melhor ainda, não causava qualquer mal. Além do mais: demonstrava que ele não tinha perdido a esperança e nem demonstrava acanhamento em tentar fazer o que gostava.

No ano de 1975 fui trabalhar em Jequié-BA. Não tinha como levar o meu tio e ele passou a ser cuidado pelo primo Wellington de tia Vina, que o trouxe para Aracaju.

Em 1976, encontrei pela última vez com o querido tio Totonho. Não esqueço que foi a primeira vez que vi lágrimas descendo entre as rugas de seu quase centenário rosto. Ele estava abraçado com meu filho primogênito. E com ele também chorei.

Poucos meses depois, senti novamente o sal das lágrimas ao saber que meu tio-avô tinha ingressado em outra dimensão.

Aracaju, 25/02/2019

Beto Déda

4 comentários:

  1. Amigo Beto, agora é uma ordem quando vier a Simão Dias quero conhecê-lo.
    Suas histórias são demais.

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  2. Oi, Deda. Andava sentindo sua falta e somente agora descobri por onde andas. Não tinha conhecimento do seu blog (é assim que se escreve?) Doravante serei cativo deste espaço. Um abração.

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