Nadando
no poço do Caiçá, em:
“um
passado diverso e melhor”.
O livro “O
queijo e os vermes” é um best-seller,
no qual o historiador Carlo Ginzburg narra a perseguição sofrida por um
moleiro italiano, conhecido como Menocchio, por causa de sua incomum cosmogonia,
em processo movido pela Inquisição no século XVI. Ginzburg se aprofunda no
estudo do processo, descobre e faz comparações das leituras e interpretações do
perseguido moleiro, de modo a entender melhor o que se pensava naquela época,
ou seja, o alcance histórico que aquele acontecimento descortinava.
Estive relendo o citado
livro e, mais uma vez, deparei-me com uma interessante afirmação do citado
historiador ao comentar as ideias do Menocchio, que contestava a Igreja rica e
corrupta do seu tempo com a Igreja primitiva que, na visão dele, era pobre e
pura. Afirma Ginzburg:
“Apenas
nos períodos de aguda transformação social emerge a imagem, em geral mítica, de
um passado diverso e melhor – um modelo de perfeição, diante do qual o presente
aparece como declínio e degeneração”.
Pois bem. Nesta época em
que vivemos dias de isolamento, diante dos efeitos de uma mortal pandemia, só
nos descortina, inexoravelmente, um horizonte nebuloso, conforme previsão de respeitáveis médicos. E esta situação se
agrava para os idosos – particularmente para mim,diante dos benditos quase oitenta anos alcançados – de modo que me contento com o encanto da visão que tenho do passado,
em consonância com o que diz o historiador italiano.
Isto naturalmente
acontece quando volto meus pensamentos ao tempo de criança, na primeira metade dos anos 50, vivendo nos
arredores da Rua dos Ribeiros, em Simão Dias, em que aproveitava, com vigor, cada
momento de encanto que a vida nos oferecia.
E repasso, aqui, as lembranças que tive nesta manhã ensolarada, aqui no Lago Dourado.
Recordo que nas manhãs quentes dos domingos sempre aconteciam as peladas na Praça de São João, usando como bola uma bexiga de boi inflada. Depois do jogo, íamos nos refrescar no poço do riacho Caiçá, perto do Matadouro, em uma baixada em frente ao sítio de seu Manoel do Curral. A correnteza era límpida, transparente, dando a falsa ideia de que o poço era raso; fato que surpreendia os novatos que não sabiam nadar e eram socorridos pela meninada já escolada.
Ao me lembrar do banho
no Caiçá, dispara em minha memória outra lembrança. Naquele tempo, o comum para
as crianças era o uso de calças curtas, com suspensórios. A única calça
comprida que eu tinha era a da farda do Grupo Escolar Fausto Cardoso. E era um
pouco puída no fundilho, gasta de tanto descer deslizando no corrimão cimentado
da escada do Grupo.
“Então, Beto, a jabá tá
doce ou salgada?”
Arre égua! Era salgada e tinha o ranço da água salobra do Caiçá!
Naquele dia fiquei fulo
da vida, mas logo depois passamos a rir do acontecido e fomos comprar mangas no
sítio do seu Manoel do Curral. Ele era um senhor sisudo, não tinha tempo para
prosa com a meninada e nos causava certo receio: o pomar dele era intocável! Em
outros sítios, cajus e mangas não eram comprados. Passávamos pelo meio do meio do arame farpado das cercas e
pegávamos os frutos. Em troca, as camisas eram marcadas com o rasgo provocado
pelas farpas do arame. E os rasgos tinham a forma de um “L”, que a garotada
interpretava como uma marca feita pela caipora, para sinalizar os meninos que
se apropriavam de frutas de sítios que não lhes pertenciam.
Estas lembranças não
têm preço... Não importa que me chamem de saudosista inveterado. E daí? Nesta
época de infortúnios – de todos os tipos – temos que nos isolar. E o refrigério
é reviver o passado, lembrando quando desfrutávamos uma infância e juventude
com muita energia, força e felicidade.
É isso... E a vida continua!
Aracaju,
27/12/2020
BETO
DÉDA