segunda-feira, 7 de outubro de 2024

 

Fatos da eleição de 1962, em Simão Dias: “Feijão de Cego”

 

 Ontem à noite, a ver o resultado das eleições para prefeito e vereadores, lembrei-me do que disse meu saudoso pai sobre a observação feita por Seu Nezinho de Antero – um agricultor simãodiense, “arguto e sério, fervoroso defensor da coerência partidária” – a respeito do resultado da votação eclética que aconteceu em Simão Dias, 07/10/1962.

Estava o Seu Nezinho acompanhando os trabalhos da apuração de votos e, notando que os eleitores não seguiram uma diretriz partidária, inconformado com a mistura, não se conteve e exclamou com indignação, em voz alta para que todos ali ouvissem: “Isto é um feijão de cego!”

 Meu pai procurou saber o sentido daquela afirmação e registrou o causo em interessante artigo: “Feijão de Cego”, publicado no jornal A Semana, edição de 20/10/1962. Repasso aqui aos amigos e parentes o referido texto.

 

 

FEIJÃO DE CEGO

(Contribuição para o folclore sergipano)

                                                                                                     

Escrito por Carvalho Déda (*)

 “Sempre fui enamorado do folclore. Membro da Comissão Sergipana de Folclore, colecionei, pacientemente, centenas de expressões populares, comparações, anedotas, historietas e acerca de um milhar de vocábulos não dicionarizados. Tudo isto guardei com avareza nos baús do ineditismo.

 Múltiplos afazeres me desviaram dessas atividades. Tornei-me descuidado, deixando escapar peças que enriqueceriam uma coleção para dar o que fazer aos pesquisadores do nosso folclore. Mas, porque o costume do cachimbo deixa a boca torta, não resisti ao sabor de uma expressão popular surgida no meio de numerosa assistência que acompanhava os trabalhos da Junta Apuradora do último pleito nesta Zona Eleitoral.

 A despeito da tensão política que tomava conta de todo o Estado, a Junta Apuradora desta zona desenvolvia suas atividades num ambiente de cordialidade e democracia. A vontade do povo era ali manifestada em cada cédula única ou em cada sobrecarta cheia de dobradinhas traquinas, que eram cantadas por diligentes escrutinadores. Eram as ecléticas que traduziam a indisciplina partidária, ou o desgaste dos partidos nacionais. Candidatos dos mais diversos partidos misturados nas sobrecartas opacas ou nos quadriláteros da cédula única.

Seu Nezinho de Antero, um camponês arguto e sério, de olhos miúdos e rasgados, com pinta de filósofo de roça, fervoroso defensor da coerência partidária, disciplinado por índole e por tradição de família, escutava com desencanto o decorrer da apuração. A cada eclética cantada, Seu Nezinho torcia o beiço, abanava a cabeça, ou dava um tunco em sinal de reprovação.

A certa altura, Seu Nezinho não se conteve. Passou a mão pelo rosto imberbe e exclamou em retirada: - Isto é um feijão de cego!...

 A expressão buliu no meu fraco de folclorista. Abandonei lápis e notas de apuração e corri atrás do Seu Nezinho: -Homem, que diabo vem a ser feijão de cego?

 O filósofo sertanejo respondeu com uma explicação que encerra profunda filosofia popular e ao mesmo tempo retrata com fidelidade o panorama partidário deste país:

- Se o senhor quer saber, vá ao mercado do feijão e observe as esmolas recolhidas por um mendigo cego. Estirando a mão à caridade dos comerciantes do cereal, o cego vai recebendo, no fundo da cuia, de saco em saco, as diversas esmolas. Logo mais a cuia estará cheia de feijão, mas numa mistura chocante de grãos: feijão preto, feijão branco, feijão roxo, feijão mulatinho, feijão pintadinho, feijão grande, feijão miúdo, feijão sempre-verde, feijão pisa, feijão de corda etc. etc. As qualidades do cereal se confundem na cuia do cego, tirando-lhe o sabor. É isto que se chama feijão de cego.

 E arrematando a pitoresca observação, o filósofo tabaréu fez a notável comparação: - o que estou vendo naquela apuração de votos é um feijão de cego. Uma mistura que tira o gosto do voto e da política também. Hoje em dia não vale a pena votar.  Eleitores não seguem os correligionários, os chefes políticos não obedecem aos partidos, os partidos não têm rumos certos e se misturam miseravelmente como feijão de cego!

Realmente, Seu Nezinho tem razão. Os partidos nacionais e os sufrágios populares se tornaram num autêntico “feijão de cego”.

 Sem querer, Seu Nezinho ofereceu uma preciosa joia ao folclore sergipano.”

(*) Carvalho Déda, jornalista, folclorista, escritor, advogado e político. Artigo publicado no jornal A SEMANA, de Simão Dias (SE), edição de 20.10.62.

...

 Qualquer semelhança desse artigo com os fatos atuais é mera coincidência.

 

Aracaju, 07/10/2024

Beto Déda 

 



4 comentários:

  1. Realmente o contemporaneo e c
    Visionaro Nezinho com maestria e sabedoria popular esta atualizadissimo, esta parecendo um feijão de cego !!!!

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    1. Parece realmente que Seu Nezinho continua com a razão.

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  2. De fato, a política mostra- se cada vez mais indigesta.
    PS: Como o Dr. Carvalho Deda escrevia bem !

    Flávio Lisa.

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    1. Ele realmente sabia transmitir seu pensamento quando escrevia. Um abraço, meu caro Flávio.

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