quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

O carnaval e os foliões de Simão Dias.
Pensando em aliviar o amargor que passa nosso país na atualidade, o bom mesmo é lembrar os antigos carnavais e ouvir os frevos de Capiba. 

Nos velhos tempos em minha terra natal era comum, nos dias que antecediam o carnaval, as crianças pegarem argila no Tanque Novo, reservatório de água que abastecia a cidade, para fazer moldes de máscaras. Esculpia-se na argila um rosto e, quando o barro endurecia, colavam-se várias folhas de jornais sobre o molde que, depois de certo tempo de secagem e de uma ligeira pintura, o papelão transformava-se em uma interessante máscara de carnaval. Fiz muitas máscaras usando essa técnica elementar. 
Lembro-me que, no carnaval de 1960, meu pai usou a argila do Tanque Novo para moldar e fazer uma máscara de Jânio Quadros. No domingo de carnaval, com paletó azul-marinho, gravata, uma vassoura na mão e a máscara do Jânio, eu saí pelas ruas de Simão Dias cantando a marchinha “O homem da vassoura vem aí”.   Fazia muito calor naquele dia e, para amenizar, tomei alguns goles de aguardente Zinebra. O resultado final foi uma ressaca sem limites... Para meus pais eu disse que ficara desarranjado por ter tomado água quente do Tanque Novo. Minha mãe olhou-me com sorriso e perguntou:
- “Bem, agora o pessoal está dando o nome de Tanque Novo a aguardente, não é?
Fiz um beicinho de desconsolo e o resultado já era esperado: na noite daquele dia não fui ao baile do Caiçara Clube.
Mas como uma lembrança leva a outra, recordo-me que em fevereiro de 2013, escrevi neste blog sobre os filósofos foliões de minha terra. 
Dos bons carnavais de Simão Dias, guardo lembranças de conterrâneos que marcaram presença.
Dentre eles, os notáveis batuqueiros Negão e Tonho do Areal, ambos engraxates. O Negão era um talento em batucar com a escova em sua caixa de limpar sapatos, que ficava na calçada do açougue municipal, confronte a redação do jornal “A Semana”. O Tonho do Areal tinha sua caixa de engraxar perto do Bar de Valério. Ambos eram bons foliões. Com um detalhe, o Negão mancava, tinha um problema na perna e não podia sambar, seu forte era cantar e batucar. Enquanto o Tonho era um grande re-bo-la-dor e, quando o bloco passava pela Rua do Sobrado, ele cantava pra sua mulher, que se chamava Luzia, a marcha de Braguinha:
  “Anda, Luzia,
    Pega um pandeiro, vem pro carnaval
    Anda, Luzia
    Que essa tristeza lhe faz muito mal...”


Outro inesquecível folião chamava-se Pedro Retraído, sobrenome que recebera por ser um homem reservado, que mais escutava que falava. Era um senhor de meia idade, galego, alto, magro, com um bigodinho aprumado, olhos meio caídos, fala mansa e de poucas palavras.

Sóbrio, sem ser tímido, Seu Pedro Retraído animava os carnavais da cidade transfigurando-se em dois personagens ao mesmo tempo. Fazia isto traçando uma linha divisória em seu próprio corpo, do alto da cabeça, passando pela metade do nariz indo até a virilha. De um lado, o direito, era ele próprio, com sua feição normal e o olhar perdido no horizonte. Cobria essa parte do corpo com metade de paletó, de camisa e de  calça, e no pé um sapato preto e branco. Do outro lado, o esquerdo, era o inverso: cortava o cabelo rente, com máquina zero, até a linha divisória, raspava uma sobrancelha, parte do bigode e pintava essa face do rosto com uma espécie de cera branca. Nesse lado do corpo mostrava uma camiseta sem manga, calção parecendo cueca samba canção, deixava a perna comprida nua e usava uma chinela no pé. Trazia pendurado na cintura um pinico com doce de leite, imitando cocô de criança. E na boca, do lado esquerdo, soprava um apito chamado “língua de sogra”. 
Com seu lado sério intocado, sem uma única palavra, lá ia ele pelas ruas da cidade com seu inconfundível andar de longas pernas. Parava em cada esquina e, pelo lado esquerdo de sua boca, soprava o apito língua de sogra, estirando-o em direção aos curiosos. Depois, com uma pequena colher de pau, saboreava um pouco do doce de leite que estava no pinico...
Despreocupado, o Retraído filosofava e encarnava a simbologia da dualidade, da dúvida e da contradição existentes na humanidade. Em sua fantasia, ele representava a tristeza e a alegria, o feio e o bonito, o bem e o mal, a pobreza e a riqueza, a verdade e a falsidade, a luz e as trevas, a seriedade e o devaneio. Sua exposição esbanjava filosofia. Inesquecível...
...
Nos anos cinquenta, a situação estava difícil aqui no Nordeste. O povo vivia com a barriga amarrada ao espinhaço. Mesmo assim, nossa gente não deixou de brincar nas ruas e no clube da cidade.
Intrigado com aquela contradição, especialmente com as despesas do carnaval, meu pai, jornalista Carvalho Déda, procurou saber como era possível se comemorar um carnaval tão animado, tão sacudido e tão rebolado, quando a cidade se debatia numa crise danada. E perguntava:
-Como aquela gente conseguiu fazer uma festa tão porreta sem dinheiro? 
Para entender essa façanha, ele entrevistou o folião Domingos Bina, que na quarta-feira de cinzas estava ressacado, no oitão do Cine Brasil, acocorado, fazendo cruz na boca. O diálogo foi o seguinte, publicado na seção “Aspectos da Cidade”, que ele escrevia sob o pseudônimo de Lynce no jornal “A Semana” (Edição de 18.02.1956),  no artigo que teve o título: “A Filosofia de Domingos Bina”:
“ – Como se faz carnaval sem dinheiro, “seu” Domingos?
O “filósofo” respondeu sem pestanejar: – Oxente! É só pegá um pedaço de papelão, fazê dele um funil, chamá Negão e Alfredo Engraxate, metê a cara na rua e a turma acompanha. Todo mundo sai atrás do funil...
- Mas “seu” Domingos, (insisti) sem correr nada no funil?
Com um riso malandro, o filósofo da bandurra explicou: - Basta oiá pro funil! Todo mundo já ta avinhado!...
 E a última pergunta: - Mas "seu" Domingos, bom carnaval sem dinheiro? E a religião como é?
O "filósofo" não titubeou: - Oxente! Depois de feito, Deus dá um jeito!...”
...
Estas são lembranças e lições de vida de inesquecíveis foliões e “filósofos” de minha terra.
Hoje, pensando e lembrando deles, não me resta dúvida de que eram pessoas ricas em sabedorias e faziam de seu humor carnavalesco o contraponto ao amargor de seus desencantos. Sem querer, eles expressavam o pensamento do grande criador de Carlitos, o imortal Charles Chaplin, que dizia ao comentar sobre o humorismo e a seriedade:
 “O humorismo alivia-nos das vicissitudes da vida, ativando o nosso senso de proporção e revelando-nos que a seriedade exagerada tende ao absurdo.”
São fatos que nos alegram e relembrá-los não faz mal a ninguém.
E viva a alegria para esquecer os dissabores que, na atualidade, recebemos diariamente goela abaixo.
ARACAJU, 22/02/2017
BETO DÉDA

Nenhum comentário:

Postar um comentário