quinta-feira, 18 de dezembro de 2014


A DOR-DE-COTOVELO DO POLÍTICO E DO SEU PARDAL...

Tenho muitas recordações do tempo que trabalhei no Banco do Nordeste. Alguns casos merecem registro e aqui vão dois deles, distantes em quase uma década entre um e outro.

Nos início dos anos 80 participei de uma reunião entre Dr. Camilo Calazans, então Presidente do Banco do Nordeste, e os Gerentes das unidades do BNB em Sergipe.

 Naquela reunião Dr. Camilo afirmou que no dia anterior recebera de um conhecido político um pedido incomum.   Esclareceu que o normal era atender solicitações em que reivindicavam atendimento de pleitos de seus municípios, mas que naquele caso, pela primeira vez, um político solicitava que não atendesse proposta de financiamento formalizada por uma determinada prefeitura para reforma de um mercado. Dizendo-se decepcionado, Dr. Camilo afirmava que, na tentativa de prejudicar o Prefeito, o político pretendia prejudicar toda população do seu município.

O gerente da Agência onde ocorrera o fato esclareceu a situação. Disse ele que se tratava de uma tremenda dor-de-cotovelo do político solicitante: os eleitores o abandonaram e seu candidato a prefeito perdera a eleição. Como vingança, pretendia cortar o crédito do município e inviabilizar a atuação do prefeito eleito, não se importando em causar prejuízos aos munícipes.

Enquanto Dr. Camilo concluía o seu pronunciamento, lembrei-me de um caso acontecido alguns anos antes. Foi o seguinte.

Certa manhã apareceu na Agência de Simão Dias um tipo muito engraçado, cabelos lisos, longos e puxados para cima, olhos miúdos, guarnecidos por óculos apoiados na ponta do nariz e seguros por um cordão parecendo cadarço de sapatos.

Recordo-me bem o primeiro dia que o avistei. Ele estava sentado no banco de espera, com as mãos cruzadas, segurando o joelho direito levemente levantado e balançando o pé.

Foi o saudoso colega e amigo José Américo que me sugeriu observar o novo cliente:

– Diga-me, Beto, se o sujeito ali, balançando o pé, parece ou não com o Prof. Pardal dos desenhos animados?

A figura lembrava realmente o personagem do Walter Disney. Tanto é assim que passou a ser conhecido entre os colegas como Seu Pardal.

Orientado por um comerciante pilhérico, que não gostava da bossa de alguns bancários, Seu Pardal chegou à Agência referindo-se cerimoniosamente ao Gerente como “Vossa Majestade” e aos funcionários com “Vossa Alteza”. Com jeito, foi dissuadido a deixar de usar tais pronomes e estimulado a substituí-los por “senhor”. Prontamente atendeu ao conselho e bem sério repetia: – Tá certo, “sôr”!.

Então o Seu Pardal foi fazer o cadastro com o colega mineiro Gilberto, que entre outras perguntas, indagou qual era a prole dele. 

Atordoado com a estranha pergunta, Seu Pardal coçou a cabeça, ajeitou os óculos, mexeu com os olhos, fixou-os no Gilberto, pensou cautelosamente e perguntou: – “Cuma é?”

E o colega, pacientemente, com um sorriso, esclareceu que ao perguntar-lhe sobre a prole queria saber quantos filhos e filhas ele tinha.

Animado com a explicação cuidadosa, Seu Pardal respondeu fazendo pose:

- Ói, sôr! Eu tenho uma prole e dois prolinhos...

Em pouco tempo ele se tornou conhecido de todos, fato que o desinibia a falar muito e em boa altura.

Um dia, assim que a Agência abriu, ele chegou ao balcão do setor rural, me chamou, exclamando em voz alta, exalando o cheiro do cravo-da-índia que mastigava para suavizar o ranço da noite mal dormida:

 – Seu Beto, eu venho fazer um pedido ao senhor. Peço que encarecidamente corte o crédito do Tonho Titó. Ele não merece crédito!

E antes mesmo que eu perguntasse a razão daquele singular pedido, ele bradou para que todos ouvissem:

- Pois não é que o desgramado do Tonho vestiu uma roupa vistosa, usou seu chapéu “cheque sem fundo”, embonecou seu burro com arreios novos e foi saçaricar no terreiro de minha casa. Lá, deu um assobio, e quando minha teúda e manteúda apareceu, ele pegou ela, assentou bem no cabeçote do animal e poeirou estrada afora. Fugiram... Ladrão de mulher, desgraçado! Não merece crédito...

E, exasperado, com os olhos miúdos faiscando, acrescentou:

- O pior: não tem um mês que levei a desgraçada até Aracaju, pra se receitar com um doutor que cuida das partes pudendas das mulheres. Gastei duzentos contos e ela ficou nos trinques. E mais: comprei o vestido caro e fino que a sem-vergonha usou no dia que se foi.  E o peste do Tonho é que vai gozar de tudo...

Diante do olhar incrédulo dos que escutaram o lamento, auxiliado por um amigo, Seu Pardal desceu as escadas do andar onde funcionava a carteira rural, com a cabeça baixa, alisando o cotovelo e repetindo: “O Tonho não merece crédito”...

E o colega Zé Américo, com seu modo peculiar de encarar os fatos, não perdeu a oportunidade, afirmando:

“Tadinho do Seu Pardal. Para se defrontar com o azar não precisa pisar no rasto de outros “sofredores”, basta andar pra traz, cobrindo suas próprias pegadas...”

Aracaju, 30/11/2014

Beto Déda

quarta-feira, 17 de dezembro de 2014


Lembranças do Atheneu

Estudei no Atheneu em 1961/62, onde cursei os dois primeiros anos do científico. O terceiro ano conclui em Salvador, em 1963, juntamente com outros cinco colegas sergipanos. Fomos selecionados em um concurso da SUDENE para participarmos do curso pré-vestibular de engenharia na Escola Politécnica da Bahia.

Quando estudei no Atheneu, eu morava na casa de meu cunhado Haroldo, na Avenida Simeão Sobral, zona norte da cidade, bem distante do colégio, que ficava na zona sul. Mesmo assim, sempre fiz o trajeto a pé, como era o costume da maioria dos estudantes da época. Aliás, lembro que tinha um colega japonês (Ryuichi Watanabe) que morava na Granja Pedro II, lá próximo ao atual Fórum Gumercindo Bessa, e ele também fazia o percurso a pé. Nos dias de aula de educação física, sempre ao amanhecer, íamos correndo, para não perder o horário. Quando chegávamos à quadra do colégio, o professor olhava para minha palidez suada e dizia que, pelo meu porte e aparência, era possível que já tivesse realizado todos os exercícios. Mas mesmo assim não me dispensava das aulas.

Pose para foto no monumento
na Praça Comerino
À tarde saíamos de casa logo depois do meio dia e – recordo bem esse detalhe – caminhávamos em direção ao Colégio escutando a voz inconfundível de Silva Lima, que comandava o Informativo Cinzano na Rádio Liberdade. Era o líder absoluto de audiência. Em quase todas as casas o rádio estava ligado em altura considerável que dava para ouvirmos na rua. 

Pensando no Atheneu, lembrei-me do nome de alguns colegas daquela época: Joviniano, Fausto, Tércio Tojal, Madressilva, Sônia, Luzinete, Lindinalva, Rildete, os irmãos Luiz Alberto e Aloísio Siqueira, Ryuichi, Henrique, Roosevelt, Bidias, Antonio Freitas, Gilson Simões, Gélio, os irmãos Byron e Ney, José Trindade, Antônio Valadares, Danilo e muitos outros que recordo a feição, mas a memória, momentaneamente, falha ao registrar os nomes.

Vários colegas de turma.
Recordo-me de vários causos do Atheneu. Ocorre-me, agora, um fato curioso com o colega Gilson, que morava na Rua de Laranjeiras, próximo ao Colégio de Uchoa. Ele parecia ser o mais novo da turma, era baixo, com cabelos lisos, loiros, cortados à escovinha, e usava óculos de grau. Gostava muito de inglês e não perdia as aulas da Professora Micol que – diziam – era esposa do Dr. Otávio Espírito Santos, também professor e que foi Diretor do Atheneu. A lembrança que tenho é que, àquela época, a professora já tinha passado da meia-idade.  Ela era branca, meio gorda, cabelos alvos e um riso fácil. Na verdade era muito simpática e nos encantava com seus repentes, usando ditos populares.


Nossa turma na Praça Camerino.
Pois bem. Em uma tarde, no início da aula de inglês, o colega Gilson chegou atrasado. Parou bem no centro da porta de entrada do salão e, mostrando suas faces vermelhas banhadas de suor, dirigiu-se à Professora se expressando em inglês: – Excuse, teacher.  I’m late. Sorry! (que no nosso linguajar significa: Com licença, professora. Estou atrasado. Desculpe-me!).

A boa professora, também usando a linguagem inglesa, elogiou alegremente o desempenho do ‘aplicado’ aluno, autorizando-o entrar e sentar-se no respectivo lugar.

Gilson, um gozador sem igual, se mostrou encantado com os elogios da mestra. Passado aquele momento, ele veio ao meu encontro, levantou a cabeça para me olhar por baixo dos seus óculos de grau e disse-me que repetiria a dose.

Três dias depois, ele assim o fez e recebeu outro elogio, embora desprovido do entusiasmo demonstrado na primeira vez. Podemos afirmar que foi uma aprovação formal, já que os gestos da professora demonstravam certa desconfiança.

Na semana seguinte, chega Gilson à porta da sala e, com a cara mais lisa do mundo, começou a repetir sua desculpa em inglês. A Professora Micol não aguentou, interrompeu-o bruscamente e exclamou:

 – Currapaco, paco paco! Você fica aí repetindo como papagaio. Decora a frase e vem aqui impressionar. Você pensa que babado é bico e que urubu é meu louro... 

Subitamente, a professora também foi interrompida por um gaiato no fim da sala, que  acrescentou: – Ele tá pensando que beira de pinico é biscoito fino e que beiço de jegue é pão-de-ló... E foi seguido pelo riso geral da estudantada.

Ao ouvir o inesperado aparte e o alvoroço das risadas, a Professora Micol não pestanejou e acabou o barato da turma com uma enérgica advertência:

Vocês estão enganados com a cor da chita! Parem com isso! Ordem na sala!
E a classe, caladinha, voltou aos eixos...

 Aracaju, 30/11/2014
Beto Déda

 
 



 


O caçador de relíquias em Simão Dias

 

Esta semana estava assistindo ao documentário Caçadores de Relíquias, no canal History, e lembrei-me que também em Simão Dias apareceu um comprador de antiguidades.

Naquela época a feira da cidade acontecia na Avenida Coronel Loyola e lá apareciam mascates, trovadores e comerciantes de todas as mercadorias, inclusive caçadores de relíquias.

Em um sábado, dia da grande feira, lá pelas 9 ou 10 horas fui merendar no bar de Seu Pedro Mendes que era vizinho à redação do jornal A SEMANA. Ali chegando, notei que naquele momento estava saindo um senhor de cabelos grisalhos, aparentando meia-idade, usando um terno surrado com gravata borboleta e portando uma pequena pasta. Era um comprador de antiguidades que já tinha negociado algumas peças antigas com D. Raimunda da Pensão. 

Seu Pedro, o dono do bar, sempre pilhérico, apontando para o homem de gravatinha, disse-me:

- É o negociante de velharias, veio aqui me indagando se tinha alguma antiguidade para negociar. Pensei rápido e lembrei-me que embaixo do meu balcão havia uma coisa muito antiga e que chegara a hora de pegar algum valor.

Acrescentou, então, que apresentara uma velharia ao comprador, o qual, incrédulo e sorridente, negara-se a comprar a “relíquia” e retirou-se pausadamente do bar.

Com ar de gozação, Seu Pedro esclareceu-me o ocorrido. Contou-me que sacara a “antiguidade” de um prego (conhecido como “pendura”), onde ele guardava as contas de quem pedia para pagar depois. Era uma velha nota de dívida de um conhecido velhaco da cidade. Gracejando, ele informava o nome do devedor, pronunciando letra por letra e juntando as sílabas...

E abrindo um sorriso largo, mostrando seu dente de ouro, concluiu:

- É uma antiguidade baratíssima! Repasso por apenas 5% do seu valor. Quer comprar?
Aracaju, 20/11/2014
Beto Déda
Aracaju, 20/11/2014
Beto Déda

Um das histórias “penosas” de Tio Paulo

Meus tios sempre demonstraram uma atenção especial comigo.   Desde garoto eu frequentava muito suas casas e eles me encantavam ao narrar fatos da vida, procurando um viés que retirasse um exemplo para minha observância no futuro.  Não é demais afirmar que até hoje tenho uma saudade imensa de todos eles.

Mas tinha um que eu tinha um carinho imenso, porque tive uma intimidade maior. Era o tio Paulo. Tenho várias razões para isto. Minha admiração não foi apenas no tempo de criança ou de adolescente. Nossa amizade se firmou ainda mais depois dele aposentado e eu já adulto. Quando ele ficou viúvo passou a morar próximo à minha residência e quase que diariamente, à noite, após o jantar, eu ia à sua casa para uma animada conversa. Ainda hoje, quando passo próximo àquela casa, relembro com saudade o querido tio.

Tio Paulo me contando as "penosas"
Ele tinha um modo especial de contar os causos e o fazia transbordando humor. Gostava imensamente de narrar fatos picantes que ele denominava “histórias penosas”. Um simples acontecimento era matéria prima para seu repertório de piadas “penosas”, que magistralmente usava como chave para abrir risos, inclusive daqueles que têm a cara amarrada.

Enquanto ele fumava um charuto da Suerdieck (que era produzido na cidade baiana de Cruz das Almas), contou-me o caso que aconteceu com um comerciante do mercado de Aracaju. Repasso pra vocês mais ou menos o que me lembro.

Na segunda metade dos anos 50, tio Paulo residia aqui em Aracaju e tinha uma loja no Mercado, onde vendia calçados produzidos em sua fábrica “Sidon”, situada em Simão Dias.

Naquela época, muitos negociantes, como meu tio, moravam na Avenida Simão Sobral e pegavam uma marinete (ônibus) para se deslocarem ao mercado. Entre eles, destacava-se um senhor, conhecido como Alvinho, que primava no vestir e gostava de usar um terno branco, impecavelmente limpo.

Naquele tempo, as oficinas da Ferrovia Leste Brasileiro funcionavam em frente ao mercado e à tardinha alguns trabalhadores da Ferrovia, vestidos em macacões manchados de graxa, também tomavam o ônibus em direção ao norte da cidade.

Certo dia o seu Alvinho verificou tristemente que, no ônibus, um trabalhador das oficinas sentara ao seu lado e sujou seu impecável terno. Esse transtorno foi o ponto chave para ele bolar um plano para se livrar dos sujos. Preparou um pacote com a aparência de uma caixa de ovos e, sempre que entrava no ônibus, colocava-o junto ao seu assento. Quando algum passageiro se aproximava, ele avisava categoricamente, apontando para o invólucro: Cuidado com os ovos!

Usando essa estratégia, ele afastava os sujos e se protegia.

Certo dia, um curioso aprendiz das oficinas notou que o pacote de ovos do seu Alvinho não mudava; tinha o mesmo papel de embrulho e a mesma forma. Então pensou com seus botões: “Esse velho tá gozando com a gente. Não tem nada de ovos naquele pacote”.

Pensando assim, aproximou-se do seu Alvinho e sem dar bolas para a costumeira advertência do cuidadoso senhor, sentou-se sobre o bendito pacote e imediatamente deu um pulo de agonia, gritando de dor: - Uai!...

 Ao perceber o grito do incauto aprendiz, seu Alvinho exclamou sem esconder a satisfação: – Bem que eu avisei para ter cuidado com os ovos...

O certo é que em sua advertência ele se referia a outros ovos, porque no pacote existia apenas uma barra de sabão com vários pregos grudados com as pontas pra cima. Pregos de ripão, bem pontiagudos!

Aracaju, 28 de novembro de 2014.

Beto Déda

domingo, 14 de dezembro de 2014


O Doidinho e o canto a Sá Mariquinha.

Em recente encontro com familiares, dizia uma querida sobrinha que nossa memória guarda acontecimentos como se fossem filmagens e vez por outra vêm à tona, como flash, inesperadamente. É verdade!

Sempre gostei de cantar no banheiro. E esta semana estava debaixo do chuveiro agitando minha voz quando de repente, como um flash iluminando minha memória, passei a cantarolar os versos de um menino doidinho que morava em Simão Dias, lá pelos anos cinquenta.

Pois bem. Se vocês tiverem paciência, contarei as lembranças que tenho do doidinho e a cantiga a Sá Mariquinha.

Ele era um garoto que aparentava 16 anos e, no máximo, não passava dos 18. Não girava bem da cabeça, era maluquinho mesmo. Tinha o rosto marcado pelo sol, que deixava marcas de sardas em sua pele branca. Cabelo curto, liso e despenteado. O nariz empinado, a boca sempre fazendo biquinho ou mostrando a falha de um dente frontal.

Andava pelas ruas, sempre fora das calçadas, seguindo as valas de escoamento de águas, em passos rápidos e largos, cantarolando seus dizeres em ritmo. Se estivesse de bom humor, seu canto era simples, alegre e sem escândalo. Mas quando o juízo ficava quente e confuso, não pestanejava em acelerar o seu louco andar, transportando para seus versos palavras de baixo calão.

A cantiga preferida dele era a que invocava uma tal Sá Mariquinha, para pedir linha.

De então até hoje, não descobri quem era a Sá Mariquinha e porquê ele queria linha.  Algumas pessoas da época arriscam a sugerir que Sá Mariquinha era uma costureira da cidade que o Doidinho pedia linha para empinar arraia. Não tenho certeza disso.

O certo é que ainda hoje me lembrei de alguns trechos de seu repertório. Um deles era cantarolado quando ele estava calmo e dizia o seguinte:

- Sá Mariquinha, eu quero linha, eu quero linha! Pularam minha cerca e roubaram três galinhas; uma era branca e duas pretinhas...”

Quando, porém, estava com o juízo confuso, com mau humor, seus passos aumentavam, e quase correndo, pisoteando com força as águas que desciam pela sarjeta, olhava para os transeuntes com seu nariz fino empinado e cantarolava:

- Sá Mariquinha, eu quero linha, quero linha! A pica é do galo e o xibiu é da galinha...

Nesse seu cantar de protesto, a entonação que ele dava às palavras chulas causava riso geral e faziam as puritanas torcer o nariz, dizendo-se escandalizadas.

Eta Doidinho de rima porreta!
Aracaju, 03/11/2014
Beto Déda