terça-feira, 22 de dezembro de 2015

O Frustrado Namoro na Ponte do Caiçá.


Tal um computador que guarda velhos arquivos, da mesma forma nossa cachola conserva lembranças que marcaram nossa vida. E um simples olhar ou apenas um fiasco de luz tem a magia de provocar em nossa mente o recuo do tempo e nos transportar ao passado, revivendo emoções.

Grupo Escolar Fausto Cardoso - Simão Dias - Sergipe
Recentemente, a centelha que ativou minha memória foi o rosto de uma mulher, provocando-me recordações bem antigas, da primeira metade dos anos cinquenta, quando eu estudava no Grupo Escolar Fausto Cardoso, em Simão Dias.

O que vou repassar para os amigos é um idílico caso que aconteceu quando os alunos do Grupo Escolar ensaiavam o desfile cívico que aconteceria no dia festivo da independência. Treinávamos a marcha, ouvindo o rufar dos tambores, em volta da Praça de Matriz e pelas ruas circunvizinhas.

Minha pose. Todo concho, envergando a farda
do Grupo Escolar Fausto Cardoso
Eu fazia parte de um grupo de cinco amigos, com idades entre 12 e 14 anos: eu, Zé Carlos, Hamilton, Aloísio e Dória.  Tínhamos namoradas que eram amigas comuns e sempre estávamos a marcar os lugares onde podíamos nos encontrar. Naquela época, em nossa idade, o namoro não ia além de um beijo rápido e um abraço furtivo. Embora se tratasse de namoros inocentes dos anos cinquenta, por razões óbvias, não revelo o nome das meninas. 
  
Em uma tarde, depois do treinamento para o desfile, nos reunimos com as garotas para marcar um encontro. Era nosso propósito conhecer a nova ponte sobre o Caiçá, que ficava próximo ao curtume de Seu Cassimiro, no início da estrada para Pinhão. Todos diziam que era uma vista maravilhosa. 

Acontece que apareceu um colega apelidado de Niño, que queria participar da turma. Não foi aceito. Em represália, saiu a espalhar boatos sobre o namoro, juntou-se a outros garotos e passaram a nos seguir. Separamo-nos das meninas e iniciamos uma correria sem limites. Saímos da Praça pela casa dos Dória, que ficava vizinha à de tio Sininho. Saímos pelo portão dos fundos, onde ficava o Sítio de Juca Matos, descemos pela ladeira de Roque e fomos parar na Praça São João, no portão de minha casa, despistando o grupo que nos seguia.  

Resolvido o problema da perseguição, surgiram outros bem maiores: os fuxicos e mexericos. Primeiro dos guris que imaginavam e inventavam situações que não aconteceram. Inclusive anunciando que fomos surpreendidos namorando embaixo da ponte do Caiçá, na estrada para Pinhão.

Um colega, que tinha o apelido de Ratinho, foi até à casa de uma de nossas Professoras e anunciou em voz escandalosa:
- Professora, sua irmã está ‘namorando’ o Aloísio embaixo da ponte do Caiçá...

Espalhado o boato, daí em diante o assunto escapou da alçada dos guris e passou a ser dominado pelos adultos, com os acréscimos próprios dos que atingiram a maioridade. E o pretenso caso do namoro na ponte transformou-se no comentário número um da cidade.

Então surgiram invenções com detalhes escandalosos: que foram encontradas calcinhas na beira do Caiçá; que avistaram um de nós correndo nu, com as calças na mão; além de outras invencionices impublicáveis...

E a notícia chegou aos nossos pais com as consequências previsíveis. Ao anoitecer daquele dia, escondido na sala da frente de minha casa, ouvi quando Seu Chico, que também morava na Rua dos Ribeiros, encontrou-se com meu pai e foi dizendo:
- Zeca, já soube do acontecido com nossas crianças na ponte do Caiçá?
E contou o que tinha ouvido dos outros, esclarecendo que já disciplinara seu filho Hamilton com uma boa surra.  Encerrou seu comentário com uma informação que sugeria sova para mim:
- O seu Beto também estava lá...

Evitei encontrar-me com papai. Procurei refúgio na casa de tia Nice, onde fui ajudá-la no pilão, a amassar arroz para fazer cuscuz para o jantar. Esperei o tempo passar e meu velho esquecer o fuxico. O certo é que papai foi cuidar de outros assuntos de maior urgência e eu me livrei da parte lisa do seu tamanco, que era sempre usado para nos disciplinar.
...

E hoje, mesmo sem esquecer a frustração do encontro na ponte, sentimos alegria ao recordar o riso simpático das queridas garotinhas dos bons tempos do Grupo Fausto Cardoso.

Aracaju, 20/12/2015

Beto Déda

terça-feira, 8 de dezembro de 2015

Mas afinal, quem era o intelectual “Simeon de Sá Bazu”?

Nesta semana andei lá pelo centro da cidade e, passando pela Praça Fausto Cardoso, lembrei-me do tempo que fui redator da Secretaria de Imprensa no Governo do Dr. Celso Carvalho, que era meu conterrâneo e padrinho. A Secretaria ficava no Palácio Olímpio Campos, em uma sala em frente ao Gabinete do Governador.  Os trabalhos de redação e divulgação eram comandados por um funcionário público que redigia bem, sabia discursar e, como era versado em ritos cerimoniais dos governos, também organizava os atos públicos em que o governador participava.
Lembro-me muito bem que o dito servidor era gordo, tinha uma barriga avantajada e um bigodinho que lembravam o Sargento Garcia dos filmes de Zorro. Mas, à boca miúda, a galera aplicava-lhe apelidos engraçados, alguns inconvenientes, realçando sua grande pança; outros evidenciavam que seu interesse estava mais ligado ao palácio do que aos governantes, atribuindo-lhe o apelido de “Gato de Palácio”.
A verdade é que ao redator-chefe tinha uma verve fantástica e sabia muito bem usá-la nos atos em que lhe permitiam a palavra. Gostava de discursar e, muitas vezes, mesmo estando sozinho em seu gabinete, ouvíamos seus brados inflamados, algumas vezes a verberar contra pessoas que fugiam de seu agrado, usando impropérios, acusando-os de comunistas.
Certa vez tive um desentendimento forte com o chefe de redação. Tudo porque eu usava as horas vagas para escrever artigos que eram publicados no jornal “A Semana”, editado por meu pai em Simão Dias.  Eram artigos simples, que escrevia sob o pseudônimo “Berto”, em que sempre focalizava um personagem de minha terra.
O artigo que escrevia e que deu origem à discussão com o redator-chefe.
Em uma manhã monótona em que nada se tinha a fazer, eu estava no meu birô, datilografando um artigo sobre o vendedor de quebra-queixo, quando se aproximou o chefe e, acintosamente, bisbilhotando o que eu fazia, iniciou uma discussão que culminou com ofensas mútuas. No mínimo fui chamado de comunista e, no vigor da minha juventude, respondi com firmeza e no mesmo tom de voz, usando os apelidos inconvenientes.  Foi um bafafá que repercutiu nas demais repartições do Paço Olímpio Campos. Saí da sala da imprensa dizendo que não mais trabalharia ali.   Fui socorrido por vários amigos, que me deram razão e se mostraram solidários, entre eles: o Secretário da Casa Civil e o Coronel Chefe da Guarda do Palácio.
O fato é que larguei o ofício de redator do Diário Oficial e fui promovido à Oficial de Gabinete do Governador. E a promoção não foi exclusivamente porque a razão estava ao meu lado. Eu era um simples garoto e o que realmente pesou foi nome do meu pai, que me deu irrestrito apoio, e o poder de decisão do meu conterrâneo e padrinho.
Passado o entrevero, mesmo desconfiados, tivemos que manter o diálogo e continuarmos a conversar por força do trabalho.
Pois bem. Como disse alhures, o redator-chefe adorava discursar e era considerado por muitos como um grande orador. Sabia dosar as palavras e gostava de citar grandes pensadores, dentre os quais um que sempre me deixou curioso: Simeon de Sá Bazu (ele fazia um biquinho para realçar a pronúncia francesa do “U” como se fosse um “i”).
Em seus discursos ele exclamava com ênfase:
- “Como dizia o grande filósofo e pensador francês ‘Simeon de Sá Bazu’, a vida nos apresenta momentos de grandes emoções...”
E por aí seguia seus inflamados discursos.
Em determinada tarde, impressionado ao ouvir a repetição do nome do ilustre pensador francês, minha curiosidade espanou o receito e, com esforço, ousei perguntar ao celebrado orador quem era realmente o filósofo Simeão de Sá Bazu.
Ele olhou-me sorridente, mostrando seus dentes frontais separados, e me surpreendeu com um resposta clara, simpática e sincera:
- Ora, ora, caro jovem. No mundo dos grandes oradores tudo é possível. Quando a memória falha, o improviso preenche a lacuna. Na verdade, o Simeon de Sá Bazii não é ninguém mais, nem menos, que o moleque SIMÃO, FILHO DE DONA BAZU, a baiana morena que vende acarajé e cocada ali na Rua de Pacatuba...
Aracaju, 08/12/2015

Beto Déda

quinta-feira, 26 de novembro de 2015

A Escandalosa e seu jeito de tudo resolver

Conheci uma garota em minha terra que era uma graça. Fugia aos padrões das demais meninas. Era conhecida como Escandalosa e tinha livre pensamento. Sem papas na língua, sem amarras; sabia expandir os limites de seus sonhos e desejos.
Indaguei certa vez se não se preocupava com o que os outros pensavam do que ela dizia e fazia. Respondeu-me, balançando a cabeça de lado, como se fizesse desdém: “Ora bolas! Os outros que se f... Faço o que bem entendo...
Quando queria satisfazer um desejo, não vacilava. Fazia. Se pensava em alegrar alguém, dando alguma coisa, não esperava o pedido. Oferecia, sem constrangimento, com um simples: “Quer? Tome...” E a oferta incluía até aquilo que não se fala junto aos castos...
Certa vez, eu e meu primo Zé Carlos, estávamos aqui em Aracaju, em pleno carnaval na Rua João Pessoa e ficamos surpresos ao avistar a irreverente garota de Simão Dias.  Lá estava ela, de melindrosa, pulando e marcando o frevo, com uma sombrinha em uma mão e um lança-perfume de plástico na outra.
No ritmo do arranjo que tocava os frevos pernambucanos do mestre Capiba, enquanto dava os passos mostrando as coxas com salpicos de confete, Escandalosa aproximou-se e indagou maliciosa: “Querem? Tomem... E rebolou a popança em nossa frente, bem juntinho, fustigando-nos. Ficamos boquiabertos com tal desfaçada oferta.
Escandalosa era persuasiva e não media esforços em suas conquistas. Em nossa terra se afeiçoou de um moço e tentou conquistá-lo. Usou todas as simpatias previstas para o dia de Santo Antônio, o padroeiro dos namorados. Não deu certo. Resolveu, então, usar uma mandiga forte: fez uma reza poderosa, pegou um retrato 3x4 do afeiçoado e colou nas costas de um sapo-cururu.  A reza talvez tenha surtido algum efeito; o sapo, não. O batráquio com o retrato do inditoso nas costas aproveitou o buraco do esgoto e fugiu da casa, descendo a Rua do Pastinho, sendo acossado pela meninada. E a mandiga gorou...
Na verdade o seu insucesso era consequência do pouco atrativo devido a ação voraz dos janeiros, que lhe subtraíram a capacidade de atrair. Mas ela não se dava por vencida.

Lembro-me agora e, embora não possa confirmar o fato, repasso para os amigos a força persuasiva de Escandalosa, conforme me fora contado pelo conterrâneo Serafim. Devo esclarecer que nos velhos tempos, o Serafim participava das brincadeiras na Praça de São João, onde ele costumava comer tanajuras torradas, igual ao que os ricaços fazem nos melhores restaurantes de Nova Iorque. Para mim, Serafim sempre será o maior repentista que conheci. Suas conversas eram versejadas. Quando eu mencionava seu nome, ele repetia com rima:
“Serafim, Serafim! Cuide de você que eu cuido de mim. E se quiser saber das coisas eu conto do começo ao fim...”


Pois bem. Dizia-me o Serafim que a Escandalosa ao se tornar coroa, sem contar com as vantagens que a mocidade lhe concedera, apaixonou-se por um mancebo, que morava lá pelas bandas do Bonfim, em direção ao campo de aviação. O moço não lhe dava bolas.

Escandalosa não se desanimou. Foi à luta. Em determinada tarde, ela embelezou-se com capricho e partiu para a conquista. Pacientemente, foi esperar o afeiçoado, lá na estrada perto do posto fiscal. Quando avistou o benquisto, exclamou aos berros:

 “Socorro! Este moço quer me agarrar a pulso. Me acudam...”

Surpreso com tal disparate, o sujeito se defendeu, dizendo que era impossível tal agressão. E justificou:

Senhora, mesmo que estivesse interessado, não é possível, não vê que estou com as mãos ocupadas, com um chuço, um bode, uma perua e um tacho...”

E a Escandalosa, para encerrar a conversa, deu um jeito, dizendo maliciosa e, como sempre, insinuante:

“Você querendo, bem pode:
Finca o chuço e amarra o bode;
Emborca o tacho...
Bota a perua debaixo!...”

Aí não teve jeito, o moço fincou o chuço...

Aracaju, 26/11/2015

Beto Déda

quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Alexandre Caroso, tio João e a lamparina.
No último sábado, na feirinha do bairro Grageru, comentando com Wellington Aragão sobre os amigos da velha guarda de Simão Dias e Jequié, lembrei-me do Alexandre Caroso, outro jequieense que também partilhava da amizade do tio João, Dr. Salustino e Lapa.
Foto capturada do Google Map. Rua Alvares Cabral, Jequié- BA
Alexandre Caroso era um pecuarista que residia em Salvador, mas sempre estava em Jequié onde possuía sua propriedade rural. Na cidade sol, ele pernoitava em uma casa que tinha na Rua Álvares Cabral, próximo a minha residência. Foi lá que o conheci.

Ficamos amigos quando eu soube que ele conhecera minha terra e o tio João Déda, ao visitar Dr. Salustino, em companhia do Sr. Lapa.


Tio João Déda
Lembro-me das boas risadas do Alexandre ao me contar como conhecera meu tio. Repasso o causo aos amigos, procurando ser fiel ao que me foi relatado. Aliás, esse fato foi devidamente confirmado pelos demais participantes.
Dizia Alexandre que já conhecia, por ouvir dos amigos comuns, a paciência e os cuidados do tio João ao realizar os trabalhos de artesanato. Em companhia do Dr. Salustino e do Seu Lapa, fora conhecer meu tio em sua tenda. Os amigos ficaram observando ao longe, e sugeriram que o Alexandre fosse sozinho conhecê-lo e testar sua paciência.
O Alexandre foi mansamente entrando na tenda e observando os trabalhos em couro. Era tardinha e meu tio estava em frente ao seu balcão de trabalho, começando a acender uma placa (na época não existia energia elétrica em Simão Dias e se usavam as luminárias a querosene: placas ou lampiões, candeeiros e petromax).
O Alexandre aproximou-se, cumprimentou meu tio e indagou: “O senhor faz e vende jalecos como esse aí?”.
Meu tio virou-se para olhar o jaleco, então o Alexandre, sem o velho perceber, assoprou em direção à placa e apagou o pavio. Antes de responder, meu tio pegou o fósforo e voltou a acender a lamparina. O visitante continuou fazendo indagações para distraí-lo, aproveitou uma oportunidade e  mais uma vez apagou a luminária. Pacientemente meu tio pegou, em baixo do balcão, a caixa de fósforos e novamente acendeu o pavio.
Alexandre encompridou a conversa e, pela terceira vez, apagou o pavio da placa. Aí já dava pra notar que estava acontecendo alguma coisa errada. Meu tio franziu a testa, balançou levemente a cabeça de lado, então pegou em baixo do balcão, não o fósforo, mais o seu inseparável revólver 38, Smith & Wesson, conhecido na terra do Caiçá como “simite-oeste 38”, apontou para o assustado interlocutor, e lançou a enérgica advertência:
“Apague de novo seu peste, pra vê se eu também não lhe apago!...
Nesse instante, Dr. Salustino e Lapa entraram rapidamente na tenda e acalmaram tio João, esclarecendo a brincadeira.
E riram muito, lembrando a expressão de susto do Alexandre.
A paciência do meu tio tinha limites.
Aracaju, 11/11/2015

BETO DÉDA

quarta-feira, 4 de novembro de 2015


O INESQUECÍVEL HUMOR DO HOMEM DE  ESVOAÇANTES CABELOS BRANCOS.

Esta semana estava limpando a sela do cavalo “Guri”, para meu neto galopar no próximo domingo. Ao passar o óleo  nos arreios, lembrei-me das selas mineiras feitas em Jequié e que o Seu Lapa mandava para Dr. Salustino.

O Lapa era um senhor branco, de meia estatura, bem humorado e que tinha um traço marcante: seus cabelos brancos esvoaçantes.

Conheci Seu Lapa, em 1975, quando fui trabalhar na agência do Banco do Nordeste na cidade baiana de Jequié. Justo no final daquele ano, eu recebi de meu cunhado, Aristides Souza, um antigo baú de madeira de lei, que foi transportado pelo caminhão do conterrâneo Antônio Nunes, pai do saudoso Deputado Federal Pedrinho Valadares.

O caminhão que transportara o baú estava estacionado em frente à casa que eu aluguei e passei a residir, na Rua Álvares Cabral, vizinha a uma clínica denominada Serviços Médicos de Jequié - Semeje.

Então apareceu aquele senhor risonho de cabelos brancos e indagou:
“- Vocês que são de lá (referia-se a Simão Dias, que ele notara na placa do caminhão), digam-me:

        Na Rua das Louceiras ainda fabricam louça?
        Na Rua da Lama ainda tem muita lama?

        Na Rua dos Buracos ainda tem a buracama?
        Na Rua do Mulungu ainda é a Rua do mulherio?

        E na Rua do Pinico ainda se largam muitos urinóis?”.

Diante de tais questionamentos não restou dúvida que era alguém que conhecia a boa terra de Senhora Santana.

Com seus cabelos brancos esvoaçantes, o senhor Lapa respondeu que não era de Simão Dias, mas que conhecia a cidade e lá tinha dois bons amigos: Dr. Salustino Neto e João Déda.


Disse-me que conheceu os nomes das ruas lendo um livro que lhe fora presentado por Dr. Salustino: “Simão Dias- Fragmentos de Sua História”. E demonstrou alegria ao saber que o livro tinha sido escrito por meu pai e que eu era sobrinho de João Déda.

Ficamos amigos e quando eu viajava a Simão Dias ele sempre tinha encomendas para os dois amigos. Ao Dr. Salustino ele mandava sempre uma boa sela mineira, fabricada por um famoso artesão que morava no bairro Jequiezinho. Para tio João Déda a lembrança era uma surpresa muito chistosa, própria de seu incomparável humor.

Lembro-me, agora, do saudoso tio João narrando os inesquecíveis presentes do Seu Lapa.

Dizia meu tio que certo dia, bem cedinho, ele estava no curral de sua malhada, que ficava na Rua do Alambique, tirando leite de uma vaca, sentado em um velho caixote de madeira, daqueles que vendiam barras de sabão pintado. Apareceram por lá o Dr. Salustino e o Seu Lapa. Conversaram muito e Lapa ficou admirado com o equilíbrio de tio João ao usar como assento o frágil caixote de madeira.
Lapa não esqueceu aquela cena engraçada. Aproveitou uma das passagens do caminhão de Dão Rodrigues por Jequié e mandou para o meu tio um presente sui generis: um banco medindo 4 metros de comprimento e um bilhete com quatro palavras: “Para João tirar leite”.

Por muito tempo meu tio conservou o “banquinho” na entrada de sua casa.
De outra feita, chega o caminhão em frente à tenda de meu tio e o Dão Rodrigues anuncia: “Encomenda do Seu Lapa, de Jequié, para Seu João Déda”.

E desceu uma grande caixa, medindo aproximadamente um metro cúbico.
A caixa não pesava. Tio João olhou desconfiado e pensou com seus botões: “é mais uma brincadeira do Lapa”.

Começou abrir a caixa. Dentro da primeira tinha outra caixa e mais outra, e mais outra e passou foi tempo tirando caixas da caixa. Ao fim, chega a uma caixinha em que tinha a lembrança: um pequeno canivete marca corneta, que meu bom tio adornou com um traçado de pelica e passou a usar, daquele dia em diante, preso ao cinturão...
E comigo guardo com alegria estas e outras lembranças dos três inesquecíveis amigos comuns: Lapa, tio João Déda e Dr. Salustino.

Aracaju, 04/11/2015
Beto Déda

sexta-feira, 23 de outubro de 2015


O dia que Gegê foi detido.

Nesta semana, passando pela Praça General Valadão, aqui em Aracaju, lembrei-me de um conterrâneo dos velhos tempos, que eu conhecia como Gegê. Ele era aprendiz da Fábrica de Calçados Sidon, em Simão Dias. Branquelo, alto, com os cabelos lisos, o rosto meio abaulado e quando falava esticava os beiços, mostrando os avantajados dentes, dentre eles um canino obturado com um naco de ouro.

O Gegê morava lá para as bandas da Rua de Mário de Elizeu, ao leste da cidade, seguindo a rua do prédio do Cine Ypiranga. Era justo naquelas redondezas que morava a donzela que apaixonara o jovem aprendiz de sapateiro.

Quando ele completou seus dezoito anos teve que servir ao Exército Brasileiro. Foi obrigado a deixar a cidade e veio para Aracaju, cheio de saudades da garota que morava próximo ao vapor de descaroçar algodão de Seu Pedro Valadares.

 Isto ocorreu no ano de 1961, e sei precisamente o ano porque foi a época em que eu comecei a estudar o curso científico no Colégio Atheneu, e  morava na Avenida Simeão Sobral, aqui em Aracaju, na casa de meu cunhado Haroldo, casado com minha querida irmã Maura.

Em um galpão anexo à sua residência, Haroldo instalou provisoriamente algumas máquinas e ali iniciou os trabalhos da nova indústria de calçados, cujo prédio ele e tio Paulo construíam na Rua Basílio Rocha.  Inicialmente vieram de Simão Dias os chefes de corte e costura para programarem a transferência, para Aracaju, da fábrica Sidon.

Foi ali que tomei conhecimento de que Gegê era recruta do Exército. Sempre que tinha folga de suas obrigações no 28º Batalhão de Caçadores ele aparecia no galpão para visitar os amigos e mostrar, orgulhoso, sua farda verde-oliva.

Acontece que o Gegê passou algumas semanas sem aparecer no galpão. Quando por lá apareceu foi indagado por Gilson de Benevides sobre a razão de seu desaparecimento. Então ele baixou a cabeça, fez o bicão e confessou que fora detido por um incompreensível sargento que o acusara de “falta de decoro”. E explicou todo o ocorrido, que repasso aqui.

Saudoso de sua namorada, ele escrevia toda semana, contando as novidades da vida na caserna e dos amigos aqui da Capital. Recebeu fotos da garota e resolveu retribuir. Foi até a Praça Valadão tirar um retrato em uma Foto Oiti, que ficava em frente ao prédio que na atualidade é uma Agência do Banco do Brasil. Ali foi fotografado envergando orgulhosamente sua farda. Pensou então em igualar a lembrança recebida da amada: enviar também uma foto excepcional.

Para isto, indagou ao proprietário do Lambe-Lambe se podia fotografá-lo usando apenas um calção. Diante da afirmativa do retratista, não vacilou. Sem qualquer cerimônia, ali mesmo na praça, diante de curiosos transeuntes, ele descalçou o coturno, despiu-se do uniforme, ficou apenas com um calção azul e se acocorou para tirar a foto.

Então surgiu a consequência inesperada. No momento em que ele se despia da farda, passava por ali o sargento, seu superior e treinador. Percebendo a hilária situação de seu subordinado, o militar aproximou-se do Gegê e indagou:

“-Recruta, você não aprendeu as lições de respeito ao uniforme e as normas de bons costumes? Vai responder por isto lá no quartel.”

As explicações do Gegê não foram convincentes: ele ficou vários dias detido por falta de decoro em praça pública e ofensa ao uniforme.

Mas ele não se arrependia e explicava, esticando os beiços e rindo, que mesmo pagando a pena não deixou de remeter os retratos pra sua amada.  

E orgulhoso mostrava a fotografia: ele fazendo pose, só de calção, acocorado com uma mão no queixo e o cotovelo apoiado na coxa. Ao fundo, um painel do Foto Oiti com pintura de uma praia.

Aracaju, 22/10/2015

Beto Déda

sexta-feira, 16 de outubro de 2015

Manequinha, o ferreiro que deu nome a um astro de Hollywood.

Recentemente no Facebook entrei em contato com uma descendente de velhos amigos de Simão Dias. E então relembrei de seu avô, o Sr. Manuel Moura, um admirável ferreiro que morava na Praça de São João ou Parque Zacarias de Carvalho, local de minhas travessuras quando era garoto.
Seu Manequinha 
O Manoel Moura era conhecido como Manequinha. De estatura média, gordo, com avantajada barriga, sempre com um sorriso espontâneo em seu rosto redondo. Foi um renomado ferreiro em nossa cidade. Ele cuidava com esmero de sua arte de fabricar diversas ferramentas de uso comum na agricultura e na construção civil: pás, picaretas, enxadas, estrovengas, cavadores, peças para carros de bois, etc.
Com destreza, amoldava o ferro batendo com ritmo a marreta na bigorna. E aquele som me encantava e eu corria para sua tenda, para admirar os trabalhos do artesão e ouvi-lo contar seus causos. Pacientemente, ele deixava que eu batesse com um pequeno martelo na bigorna e que ativasse o fogo, puxando o fole de assopro. Era um encanto pra minha mente de garoto.
O desempenho do seu ritmo da batida na bigorna foi o ponto chave para ele se tornar músico. Sua barriga avantajada era na medida para portar o bombo das famosas bandas simãodienses. Desde a filarmônica “Lambe-Tudo” do Mestre Lúcio até a “Lira Santana” comandada por Raimundo Macedo.
Manequinha era natural de Paripiranga. Quando jovem foi morar no Rio de Janeiro, servir ao Exército Brasileiro. Não gostou do Sul e voltou. Veio morar em Simão Dias. Casou-se duas vezes. A primeira com D. Maria, com a qual teve dois filhos: Altamiro e Zelito. Com o falecimento de sua esposa, contraiu a segunda núpcias com D. Francisquinha e dessa união nasceram vários filhos, dentre os quais lembro bem de Raimundo, João, Tonho, Mário e Manuel.  Todos eles meus amigos e companheiros de brincadeiras ali no Parque. E todos eram conhecidos por um mesmo sobrenome: de Manequinha. Parece-me que somente dois deles seguiram a arte do pai: Altamiro (que também era músico e fazia parte do regional de Barbosa Guimarães) e Antônio.
A neta, filha de Antônio, prestou uma grande homenagem ao seu pai e ao seu avô, acrescentando seus nomes ao se identificar no Facebook: Vaninha de Antônio de Manequinha. .
E não foi só para a família que o Manequinha deu o nome. Em nossa cidade a sua popularidade entre os garotos era de tal dimensão que, no meu entendimento, ele foi o único brasileiro que legou seu nome a um astro do cinema americano. Enquanto o normal era o sujeito da terra receber o nome de um astro, com o Manequinha aconteceu o contrário: ele passou seu nome para o artista.
Manequinha (Smiley Burnette) e Durango Kid
Naquela época a grande diversão da cidade era o Cine Ypiranga, de Seu Pierre Freitas. E os filmes mais concorridos eram os caubóis com Durango Kid, interpretado por Charles Starrett, e seu inseparável e engraçado coadjuvante que tinha o nome artístico de Smiley Burnette. Mas tinha um detalhe: em nossa cidade o nome do companheiro de Durango era Manequinha. Isto porque o Smiley Burnette era parecido com o nosso ferreiro.  A meninada não sabia quem era o Smiley Burnette, mas se perguntassem quem era o engraçado amigo de Durango Kid, não pestanejavam: é o Manequinha. Em minha Simão Dias o artista americano mudou de nome: em vez de Smiley quem contracenava com o Durango Kid era o MANEQUINHA...
Lembro-me do último contato que tive com o admirável ferreiro. Aconteceu  no final dos anos sessenta, quando escrevi um artigo sobre ele no jornal “A Semana”. Ele estava magro, quase cego, mas sempre com um humor formidável. Ao responder minha indagação sobre sua saúde ele informou que gostava muito dos picolés do Bar de Valério e, depois de saboreá-los, tomava dois grandes copos d’água do açude. E dava sua versão do que lhe explicara o Dr. Aguiar:
- A água dissolvia o açúcar dos picolés em meu sangue, que ficou doce demais, então, eu contraí a ‘desgroja’ da diabetes.
 E abria o rosto em um largo sorriso...
São lembranças de bons amigos da boa terra. E agradeço isto a Vaninha de Tonho de Manequinha, que prestou uma belíssima homenagem ao pai e ao avô.
E aqui pra nós: eu fico imensamente alegre quando algum conterrâneo me identifica como Beto de Zeca Déda, porque aviva a lembrança do meu inesquecível pai e mestre.
Aracaju, 16/10/2015

Beto Déda ou Beto de Zeca Déda. 

quarta-feira, 7 de outubro de 2015


RECORDANDO SÁBIOS ENSINAMENTOS.



Foto da recente reunião dos filhos de
Carvalho Déda e Sinhazinha Déda
Ao ver uma fotografia do recente encontro com meus queridos irmãos, tive a alegria de me lembrar de momentos de sábias lições.

A primeira lembrança é de um simples fato com meu saudoso pai. Estávamos na redação d’A SEMANA, em momento de descontração. Ele olhou-me por baixo dos óculos e pediu que eu lesse em voz alta o Salmo do Rei David que trata da união fraternal. Era o salmo número 133 que ele datilografara em uma folha de papel. Diz o salmo:

 “Oh! Como é bom e agradável viverem unidos os irmãos!

É como o óleo precioso sobre a cabeça, o qual desce para a barba, a barba de Arão, e desce para a gola de suas vestes.

É como o orvalho do Hermom, que desce sobre os montes de Sião.

Ali ordena o SENHOR a sua bênção, e a vida para sempre.”

Fiz a leitura, descontraidamente, sem emoção. Mas não deixei de perceber o brilho do olhar do meu querido pai, que cultivava com esmero o amor fraternal e familiar. Somente no futuro é que percebi o ensinamento e a direção que ele me indicava.

Tempos depois, em 1963, quando estudava em Salvador, recebi de tia Francisquinha Déda um presente que ainda hoje conservo, e vez por outra leio e medito: uma Bíblia Sagrada, traduzida em português por João Ferreira de Almeida, editada pela Sociedade Bíblica do Brasil.

Assim que recebi o Livro Santo de minha tia, a primeira leitura que fiz foi o salmo 133 de David. E essa prioridade foi ditada pela lembrança do inesquecível ensinamento do meu pai.

Muitos anos depois, trabalhando em Jequié, a “cidade sol” baiana, reencontrei o bendito salmo, que eu passei a repetir com entusiasmo “entre colunas”, com avental de obreiro, como se segurasse o maço e o cinzel, suavizando arestas, e pensando forte – como o fazia meu velho pai e mestre nos velhos tempos – em defesa da LIBERDADE, da IGUALDADE e da FRATERNIDADE, valores que pontuamos na justeza de nossas assinaturas.

São preciosidades de meu tesouro que guardo com carinho na arca de minhas recordações.

Na verdade, sempre estou a revê-las e, quando posso, repasso para os que cultivam, como eu, essas grandezas imateriais.

As fotos avivam as lembranças.

Aracaju, 05/10/2015

Beto Déda

terça-feira, 15 de setembro de 2015


Lembranças do tempo do BNB e dos irmãos autistas de Lagarto.
 
Nos anos sessenta, a Agência do BNB em Simão Dias era uma das maiores em Crédito Rural do Nordeste. Seu zoneamento alcançava vários municípios de Sergipe e Bahia.
O número de clientes era tal que antes mesmo de iniciar o expediente a porta do Banco era tomada pela clientela, não obstante se ter uma rigorosa e programada agenda de atendimento.
A razão do grande número de interessados eram os baixos encargos dos financiamentos. O Banco financiava a atividade rural com juros 7% ao ano, e nem se falava em correção monetária. Tais financiamentos eram formalizados por contratos de mútuos, com um montão de cláusulas, alguns com pacto adjeto de hipoteca.  A única exceção era o empréstimo para aquisição de bovinos para engorda, realizado com base em uma Resolução nº 64, do Banco Central, e formalizado através de Nota Promissória, com juros de 12% ao ano. Somente após 1967, com o Decreto Lei 167, é que surgiram as Cédulas de Crédito Rural, nas quais se datilografavam as mesmas cláusulas dos contratos e não se admitiam rasuras.  
Máquina de calcular FACIT
Para atendimento de tantos clientes, a agência necessitava um número alto de funcionários. A razão disto é que naquela época todos os documentos e cálculos bancários eram realizados manualmente. Os registros dos cálculos de juros e movimentação dos empréstimos eram feitos em fichas com lápis grafite, conferidos, e depois datilografados e submetidos a nova conferência. De ver-se que tudo era realizado com auxílio apenas das máquinas de datilografia e das calculadoras Facit (máquinas com manivelas que, impulsionadas com o movimento dos dedos, realizavam operações de multiplicar e dividir).
 
Daí a razão pela qual nos concursos para bancários se exigia um razoável conhecimento de cálculos (porcentagem, juros e regra de três), redação, datilografia e contabilidade.
Nos dias de hoje os bancos contam com modernos computadores e dispensam parte da mão de obra. Com os caixas eletrônicos e a movimentação via internet, raramente temos contatos com o reduzido número de bancários.
 
Mas deixemos esta parte pra lá e vamos reavivar a memória com os causos que nos interessam.
 
Pessoal da Agência do BNB nos anos 60
Nos anos sessenta a Agência do BNB em Simão Dias contava com mais de trinta funcionários. O número de colegas era suficiente para realizarmos um campeonato interno de futebol de salão, patrocinado pelo BNB-Clube. O meu time era o Anápolis Futebol Clube (nome que eu sugeri), o grande campeão e que foi notícia no jornal “Comunicado ao Funcionalismo”, editado pela Assessoria de Relações Pública da direção geral do BNB em Fortaleza.
Anápolis Futebol Clube - Equipe campeã do Torneio BNB de Futebol de Salão
Em pé: Adelmo, Juraci e o cunhado de Dagoberto. Agachados: Dagoberto, Edson Caetano e Beto Déda(o artilheiro).

Naquele tempo, andavam pela cidade dois rapazes excepcionais de origem lagartense. Eram irmãos, ambos autistas. Não me recordo o nome deles, mas eram conhecidos como os andarilhos calculistas de Lagarto. Vagueavam por este Brasil afora, endurecendo o couro dos pés. Baixinhos, brancos, com cabelos desalinhados, usando chapéus de palha e calças com as pernas ligeiramente arregaçadas sem cobrir os pés descalços. Um tinha um olhar fixo e vago; o outro, com estrabismo, desviava os olhos para tudo em sua volta, demonstrando uma curiosidade incontrolável.  Um era calado; o outro conversava, era portador da síndrome do sábio ou savantismo (um distúrbio psíquico, com grande habilidade para cálculos matemáticos, instantâneos e com precisão).

Pois bem. Quando eles chegavam à Agência do BNB todos se reuniam para testar as habilidades do excepcional. Em um piscar de olhos, bastando saber a data do aniversário, ele dizia com exatidão o dia da semana em que a pessoa nascera. Com uma memória fantástica ele realizava os cálculos de multiplicar e dividir com uma rapidez impressionante, ganhando de longe para a Facit, que era operada pelo colega Mário Jorge, o mais rápido nos cálculos com referida máquina.

Posteriormente, a Agência recebeu a “moderníssima” máquina elétrica Divisumma GT24, que realizava rapidamente as operações de dividir e multiplicar. Aí, então, aguardamos com interesse o aparecimento dos simpáticos irmãos andarilhos, para se testar a rapidez e a precisão do moço calculista

Calculadora Divisumma GT24
 
 Quando surgiu a oportunidade, registramos em um papel os números com vários dígitos para a realização de operações de multiplicar e dividir. Ao tempo que digitávamos os números para a máquina, informávamos ao autista prodígio. Instantaneamente ele nos dava a resposta, que anotávamos em um papel, enquanto a Divisumma barulhenta agitava o mecanismo para, segundos depois, mostrar o resultado (com atraso, mas igualzinho ao já fornecido pelo excepcional). Ficávamos pasmos. Embora sofresse deficiências psíquicas, o rapaz de Lagarto era imbatível na rapidez e na precisão ao realizar cálculos matemáticos.

Daquela época a esta parte, nunca mais tive notícia dos andarilhos de Lagarto. Possivelmente, se vivo estiver, o autista sábio ainda realize os cálculos com precisão e maior rapidez que os modernos computadores.                                            

Por onde andarão os amigos irmãos autistas dos velhos tempos?





Aracaju, 15/09/2015

Beto Déda
 

terça-feira, 11 de agosto de 2015


       

O velho telefone do Aloque.

Nesta semana tomei conhecimento de que uma pessoa querida foi vítima de um motoqueiro delinquente que roubou seu telefone móvel celular.

Atualmente o celular passou a ter uso generalizado e os bandidos, diante da impunidade, deslizaram do furto para o roubo, ou seja, passaram – descaradamente e usando grave ameaça ou violência a pessoa – a subtrair coisa móvel alheia, para sí ou para outrem.

A lamentável notícia me fez pensar nas mudanças tecnológicas que ocorreram nestes últimos sessenta anos. 

Para os jovens de hoje – acostumados com a velocidade da informação via internet, utilizando o telefone celular, os modernos tablets e usufruindo uma imensa variedade de aparelhos sofisticados – difícil é imaginar como era diferente o nosso tempo de criança, em Simão Dias, no início dos anos 50.

Observando e usufruindo o conjunto de formidáveis mudanças, os setentões, como eu, não perdemos a oportunidade de lembrar como as coisas aconteciam em nossa infância.

Recordo-me que naquela época, em minha cidade, cozinhava-se exclusivamente em fogão de lenha; o uso de geladeira era limitadíssimo (aliás, só existia uma na casa de Dr. Aguiar e, parece-me, funcionava na base de querosene). No bar do Valério tinha uma câmara frigorífica, com salmoura, para fazer picolé e gelar refresco.

Era o tempo em que os estudantes das primeiras letras usavam lousa e lápis de pedra e os mais adiantados usavam pena e tinteiro.

A energia elétrica era rara, o uso mesmo era do candeeiro, da placa (tipo de lampião) ou da pretomax. A energia gerada pela usina de Paulo Afonso foi instalada em nossa cidade no ano de 1964.

Poucos automóveis trafegavam pelas ruas: o jipe de Dr. Salustino e o do Des. Gervásio, o caminhão, tipo pau-de-arara, de Antônio Barbadinho, que levava o pessoal para pegar o trem em Salgado, e o caminhão de carga chamado “luxinho” de Seu Joaquim Sotero.

O automóvel de aluguel era uma “fobica”, também conhecida como “ford bigode”, de Manuel Ventinha, um senhor narigudo que morava em frente  ADS(Associação Desportiva Simão-diense), clube que anos depois passou a ser chamado de Caiçara Clube. 




Naquela época não existia linha telefônica na cidade. Mas me lembro de que o tio Paulo Déda inovou, colocando um telefone de linha fixa entre o Aloque e a Sapataria. Era um telefone de parede, daqueles que se usava uma manivela pra fazer a chamada.

Naquele tempo, estimulados pela novidade do tio Paulo, brincávamos de telefone usando caixas de fósforo (parte em que ficam os palitos) interligadas por um pedaço de linha. Era uma experiência rudimentar de acústica e propagação de ondas sonoras, utilizando o principio adotado pelo italiano Antonio Meucci (reconhecido pelo Congresso dos Estados Unidos, em 2002, como o verdadeiro inventor do telefone, que antes acreditávamos ter sido inventado pelo escocês Graham Bell).

Era uma brincadeira comum dos garotos da época. O cuidado era esticar a linha de modo a facilitar a propagação do som. Um garoto falava próximo à caixa de fósforos, enquanto o outro colava a outra caixa ao ouvido.  

Foi justo em uma dessas brincadeiras que derrotei, com socos, um guri alto, chamado Zelito, que costumava me bater. Estava na Praça de São João brincando de telefone com o amigo Simão, quando apareceu o Zelito e quebrou a linha. Enfurecido e descontrolado esmurrei de tal forma o fanfarrão que, depois dessa, ele nunca mais me importunou. E esse fato ficou gravado em minha memória como o dia da desforra.
...

 Ainda sobre o telefone de tio Paulo; lembro-me que em 1969, quando fiz minha primeira viagem ao Rio de Janeiro, em conversa com minha saudosa prima Nice Déda – mãe de Eneide Déda e irmã de Necy – ouvi um relato interessante. Dizia ela que meu tio, logo depois de instalar seu telefone entre o cortume e a casa comercial, não perdia oportunidade de fazer gozação com as pessoas que usavam os vocábulos “linha” e “aparelho” (este último termo era sinônimo de telefone e de latrina). Minha prima narrava mais ou menos o seguinte:
Quando alguém ligava o telefone e indagava:

      - Alô! Quem está na linha?

O tio Paulo, com seu humor inconfundível, respondia:

     - O trem... O anzol... A agulha...

E complementava:

       - Você que está no “aparelho”: lembre-se de dar descarga depois de usá-lo...

E ria à beça

Aracaju, 03/08/2015          

Beto Déda